O Estado máximo
    Suely Caldas

 

 

RIO – Na economia o ex-presidente Getúlio Vargas foi mais bem sucedido do que na política. Protegido por um Estado intervencionista, forte e poderoso que ele próprio construiu, organizou e que lhe dava autonomia para decidir e assinar medidas sem consultar a sociedade, Vargas soube aproveitar cada brecha da realidade para gerar desenvolvimento. Começou a industrializar o País, criou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Vale do Rio Doce, a Petrobrás e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), todas estatais porque o capital privado era muito limitado.

 

Vargas não foi um nacionalista ideológico, a não ser já no final do segundo governo, quando condenou a remessa de lucros das empresas estrangeiras. Em plena campanha do “Petróleo é Nosso”, Vargas fez consultas à Shell e outras empresas estrangeiras sobre o interesse em explorar petróleo no Brasil.

 

Dois momentos – “Vargas foi produto de seu tempo”, concordam economistas e historiadores que estudaram sua longa permanência no comando do País. Antonio Barros de Castro, da UFRJ e assessor especial do Ministério do Planejamento, Sérgio Besserman, da PUC do Rio, e Maria Antonieta Leopoldi (UFF), além das teses de doutorado sobre Vargas, tem em comum o diagnóstico de que ele foi muito mais um hábil e pragmático que soube aproveitar cada fenda política da realidade do que um político ideológico. Ele assumiu o poder em 1930, quando a economia privada estava quebrada e o mundo inteiro ensaiava as primeiras reações contra a grande crise econômica de 1929, nas asas do Estado.

 

“A União Soviética era o país que mais crescia no mundo, Alemanha e Itália se afirmavam como economias dinâmicas, nos Estados Unidos (o então presidente Franklin Delano) Roosevelt intervinha o tempo todo para reerguer a economia privada, a Europa e o Japão também seguiram a onda estatal, o mundo inteiro se deslocava para a direção de um Estado forte e a economia liberal estava no chão. Portanto, Vargas era vanguarda, repetia o que os países progressistas faziam”, analisa Antonio Barros de Castro.

 

Na avaliação do novo assessor econômico do governo Lula, ocorreu o inverso nos anos 80 e 90. “O Estado entrou em crise no planeta inteiro, a globalização avançou, o país de economia mais liberal do mundo – os Estados Unidos – cresceu com vigor e continuamente. O Brasil também precisava mudar.”

 

Estado Novo – As raízes da Era Vargas foram fincadas na ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, quando Getúlio centralizou poder e construiu seu projeto de governo, que resultou em dinamismo e progresso na economia e atraso e obscurantismo na política. Todo o tempo ele tentou copiar Roosevelt, mas seus métodos eram bem diferentes.

 

Enquanto Roosevelt reunia e ouvia industriais, empresários, produtores agrícolas, anotava seus problemas, elaborava projetos e os submetia à aprovação do Congresso, o autoritário Vargas criava institutos e conselhos setoriais (café, açúcar e álcool, petróleo, cacau, pinho, sal, mate, etc.), nomeava quem queria, concebia as medidas e as assinava sem ouvir a sociedade. Os dois permaneceram longo tempo no poder, mas Roosevelt por instrumentos democráticos – foi reeleito quatro e sucessivas vezes pelo voto. Já Vargas recorreu a um golpe militar para governar entre 1937 e 1945.

 

O pai de poucos – Não há registros na história de abrangentes e agressivos programas sociais, a não ser pequenas e restritas ações assistencialistas do tipo “Casa do pequeno jornaleiro”, conta Maria Antonieta. Mesmo porque 70% da população vivia dispersa e esquecida no campo, não desfrutava dos benefícios do progresso econômico. A alcunha de Vargas, “pai dos pobres”, decorreu de sua habilidade em manipular o povo pobre das cidades mais com discursos do que com ações concretas. Além disso, ele soube encarnar, identificar e confundir sua figura política com o poder de um Estado provedor, que decidia os rumos da economia e a vida das pessoas.

 

 

Seu paternalismo tinha poucos endereços e certeiros objetivos políticos, como os poderosos coronéis do Nordeste, donos de engenhos de açúcar que dominavam o poder público local. Para eles Vargas criou o Instituto do Açúcar e do Álcool, uma autarquia federal obrigada, pelo próprio estatuto, a intervir em usinas de açúcar falidas, saneá-las, pagar suas dívidas com recursos públicos e, feito isto, sem qualquer ônus financeiro devolvê-las aos ex-proprietários. Vem daí o hábito dos usineiros nordestinos de nunca pagar dívidas e impostos – o Estado pagava por eles. Na década de 80 o Banco do Brasil absorveu um calote de US$ 4 bilhões de dívidas variadas de usineiros do Nordeste e do norte fluminense.

 

Em vez de dinheiro, Vargas cobrava dos senhores de engenho – detentores do poder local em vários Estados do Nordeste – fidelidade política e adesão ao seu governo. Com isso controlou o poder político na região sem muito esforço.

 

Cafeicultores – Os privilégios que dispensou aos usineiros Vargas negou aos cafeicultores paulistas, que lhe responderam com ações de oposição nos seus 19 anos de governo. Já em 1931 o Instituto de Café de São Paulo, que decidia a política cafeeira, foi marginalizado e substituído por órgãos federais. Se antes os volumosos excedentes não exportados eram estocados e financiados pelo Banco do Brasil, a partir de 1931 Getúlio Vargas decidiu destruí-los, queimando ou jogando ao mar. O governo pagava 30% da safra que retinha em estoque, nada por 40% do volume que destruía (a chamada cota de sacrifício) e os demais 30% eram negociado no mercado livre, a preços baixíssimos.

 

Entre 1931 e 1943 foram destruídas mais de 70 milhões de sacas de café.

 

Descapitalizados e desiludidos, os cafeicultores começaram a migrar para outras culturas, entre elas o algodão, cujo plantio o governo passou a estimular, garantindo financiamento do Banco do Brasil.

 

O falso nacionalista – Seja para conquistar simpatia popular ou para agradar aos militares, Getúlio Vargas recorria a um discurso verbal de conteúdo nacionalista, mas nos bastidores agia sem preconceito ideológico, buscando investimentos onde fosse possível encontrar. E sempre encontrou nos EUA. Interessados em atrair o Brasil como aliado na América Latina, os ex-presidentes Roosevelt e Harry Truman consolidaram uma política de dependência, expressa na Comissão Mista Brasil-EUA, onde Vargas discutia e conseguia financiamento do Eximbank para seus projetos de investimento.

 

Em sua tese sobre o segundo governo (1951-1954), o ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman cita um caso inédito na história que desmente a “virada nacionalista” que os historiadores atribuem a Vargas nesse período. Besserman cita depoimento de um ex-diretor do Banco do Brasil, Egydio da Câmara Souza, na International Investment Law Conference, em 1956, no qual revela que, em plena campanha do “Petróleo é Nosso” e de criação da Petrobrás, Vargas “fez consulta pessoal a representante da Royal Dutch (Shell) e, por intermédio desta, a outras grandes companhias de petróleo acerca do interesse em prospecção de petróleo no Brasil”.

 

Maria Antonieta Leopoldi acrescenta: “Foi Vargas e não Juscelino Kubitschek quem trouxe a Volkswagen para o Brasil. Quando JK assumiu a VW já havia comprado o terreno para instalar a fábrica.” Besserman credita esta imagem nacionalista à defesa de Vargas do controle das remessa de lucros das empresas estrangeiras. “Ele usou isto para fazer populismo explícito.”

 


 

Interpretando o texto

1ª Como Vargas procurou superar a crise econômica no início da década de 30? Como Barros de Castro analisa a atuação da política econômica brasileira nos anos 30 e nos anos 80?


2ª Quais os programas sociais de Vargas que lhe rendeu a alcunha de “pai dos pobres”?


3ª Qual a relação de Vargas com os coronéis do NE? E qual a relação com os cafeicultores?


4ª Qual a política “nacionalista” de Vargas?