Globalização – Uma Nova Revolução?
    Mario Vargas Llosa

 

 

A nossa civilização é a do espetáculo – preferência pelas formas e não pelo conteúdo, a diversão como supremo bem da vida – e por isso não é de surpreender que os grandes protagonistas da atualidade sejam os jovens antiglobalistas que a polícia italiana brutalizou, em Gênova, durante a reunião do G-8, oferecendo-lhes seu primeiro mártir. Nostálgicos impenitentes do velho messianismo social já se apressaram em anunciar que o movimento contra a globalização representa agora, por fim, uma alternativa revolucionária potente contra o capitalismo e seu odiado embuste político: a democracia neoliberal. Por trás das dezenas de milhares de manifestantes que invadiram as ruas de Gênova, esses augures vêem assomar no horizonte, mais uma vez – Fênix que renasce da cinza -, um novo paraíso igualitário e coletivista.

 

Receio que se apressem em demasia e confundam a pressa com a sua sombra. Tenho a impressão de que acontecerá, com o movimento contra a globalização, por sua natureza caótica, contraditória, confusa e carente de realismo, o mesmo que ocorre em maio de 1968 na França, com o que tem muita semelhança: o que há nele de crítica social válida e de iniciativas exeqüíveis será absorvido e canalizado pelo sistema democrático, e o resto, o estrondo e os estragos dos grandes choques nas ruas, perderá toda a atualidade e ficará só como um estimulante material para sociólogos e historiadores.

 

Sob essa suposição, duas coisas me parecem evidentes: 1º. O caráter heterogêneo e autodestrutivo de um movimento no qual coabitam grupos, instituições e pessoas cujas metas, convicções e atitudes são totalmente incompatíveis entre si; e 2ª. a extraordinária flexibilidade do sistema democrático para integrar em suas vias institucionais as críticas e antagonismos que nascem em seu seio, e aproveitá-los para seu fortalecimento. Prova disso é que a democracia, com todas suas abundantes imperfeições e falhas, prevaleceu sobre os dois formidáveis adversários que a ameaçaram no século XX – os totalitarismos fascista e comunista – e que, na atualidade, só tem como inimigos as satrapias terceiro-mundistas, tipo Muhamar Khadafi, Saddam Hussein ou Fidel Castro.

 

De fato, ser inimigo da globalização pode ter algum sentido no âmbito da teoria, ou da poesia, mas na prática é um disparate semelhante ao do movimento ludista que no século XIX destruía as máquinas para impedir a mecanização da agricultura e da indústria. A realidade de nosso tempo é a de um mundo no qual as antigas fronteiras nacionais foram apagando-se até quase desaparecer em certos campos – a economia, a tecnologia, a ciência, a informação, a cultura, embora não no campo político e em outras esferas -, estabelecendo cada vez mais, entre os países dos cinco continentes, uma interdependência que conspira frontalmente com a antiga idéia do Estado-nação e suas prerrogativas tradicionais. O melhor indício de que este processo globalizador é irreversível são, como lembrou Amartya Sem, os próprios militantes antiglobalistas, variegada coletividade de muitos países, línguas e credos que se comunicam e coordenam seus comícios por meio da Internet.

 

No entanto, o repúdio a globalização – objetivo totalmente carente de realismo- é o único denominador comum dos jovens que, de Seattle a Gênova, vão protestar contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird), o Foro Econômico de Davos ou o G-8. Em tudo mais, existe no movimento uma miríade de fobias, anseios, projetos, fins e métodos que se anulam e se repelem.

 

 

O que pode haver de comum entre ecologistas que pedem políticas mais radicais na proteção do meio ambiente e os irados do Bloco Negro que destroem estabelecimentos comerciais e incendeiam automóveis? Que pode haver de comum entre os stanilistas pré-históricos e os ultranacionalistas antediluvianos? Ou entre as pacíficas e idealistas ONGs, mobilizadas pelo desejo de que os países ricos perdoem a dívida dos países pobres ou aumentem a ajuda para o combate à aids, e os grupelhos e bandos de extrema direita ou de extrema esquerda, tipo ETA, que participam dessas manifestações para se autopromover? È verdade que no movimento há muita generosidade e ilusão de moças e rapazes envergonhados de viverem em sociedades prósperas num mundo repleto de famintos; mas também é verdade que, entre os milhares e milhares de manifestantes, há um bom número de frívolos filhinhos de papai, aborrecidos com a vida, que lá vão só em busca de experiências fortes, para praticar um inédito “esporte de risco”. Sem dúvida é verdade que esse arquipélago de contradições tem em comum vaga aversão ao sistema democrático, ao qual, por ignorância, moda, sectarismo ideológico ou necessidade, responsabiliza por todos os males que a humanidade padece. Com esse linfático sentimento de mal estar ou rebeldia, pode-se impulsionar grandes espetáculos coletivos, mas não elaborar uma proposta séria e realista para mudar o mundo.

 

Diante do que foi dito, claro que continua de pé o fato de que o sistema democrático é muito imperfeito e que, mesmo nos países onde ele mais avançou, ainda está longe de ter solucionado todos os problemas. As características que o movimento antiglobalização adotou tem uma conseqüência negativa: ele fez com que as razões mais válidas para criticar os governos dos países ricos fiquem diluídas, e até descaracterizadas, pela miscelânea de idéias e propostas que transmite. Nada ajudaria mais os países pobres a sair da pobreza, por exemplo – os ajudaria muito mais que o perdão da dívida – do que a abertura das fronteiras, pelos países ocidentais, para seus produtos agrícolas, medida que eles se negam a tomar por culpa dos produtores nacionais que, graças a tarifas e subsídios, mantêm uma agricultura e agroindústria superprotegidas que custam o olho da cara para o cidadão comum de qualquer democracia ocidental. No entanto, uma das estrelas mediáticas do movimento antiglobalização, o francês José Bové, fez toda sua carreira política exigindo exatamente o contrário: barreiras alfandegárias implacáveis contra os produtos agrícolas importados. Ele e os que pensam da mesma forma fazem mais mal aos países pobres do planeta com suas teses nacionalistas contra o livre comércio do que a OMC que, de modo excessivamente tímido, tecnocrático e pessimamente divulgado, é certo, procura conseguir que se abram as fronteiras comerciais no planeta. Nesse campo específico, os países pobres precisam, para poder exportar seus produtos não é de menos, e sim de mais liberdade, quer dizer, uma globalização efetiva e não mediatizada e parcial que ainda impera.

 

Uma verdade que, em meio ao ruído e a fúria das manifestações contra a globalização, veio à luz é a seguinte: o sistema democrático liberal, que trouxe tão extraordinários avanços materiais, intelectuais e jurídicos para a humanidade, padece, por causa da especialização cada vez maior da vida pública e da modorra e rotina em que a ação cívica caiu em muitas sociedades, de uma distância crescente, que às vezes se cristaliza em divórcio entre as elites políticas e a base social. Por isso é tão freqüente a indiferença que costuma acompanhar as consultas eleitorais em muitos países democráticos: para que votar se nada vai mudar, se todos os políticos são a mesma coisa? Não é verdade que todos sejam iguais e tampouco é certo que nada vai mudar. A democracia é o único sistema que, desde suas origens distantes, é capaz de reformar-se internamente e de ir corrigindo e evoluindo de acordo com as necessidades e reivindicações de seus cidadãos. Não alcançou a perfeição nem a alcançará nunca, mas sua grande vantagem sobre todos os outros sistemas é a de que ela sabe transformar-se e renovar-se com o tempo, criando as sociedades menos imperfeitas em matéria de direitos humanos, liberdade e progresso material que a história conhece. Essa é uma realidade incontestável que a virulência contestadora dos novos desafetos dificilmente conseguirá negar. Seria muito melhor, para o mundo, se esses jovens inconformados canalizassem seus ímpetos e anseios para reformar o sistema a partir de dentro, algo perfeitamente necessário e possível, em vez de se empenhar em destruí-lo – passatempo intenso, divertido, mas totalmente inútil.

 

Vargas Llosa, Mario. O Estado de São Paulo, B10, 05.08.2001.

 

 

Interpretando o texto

1ª Como o autor situa “os jovens protagonistas antiglobalistas”? Como analisa seu caráter heterogêneo?


2ª Como o autor entende a “flexibilidade” do sistema democrático ocidental?


3ª Como o autor relaciona o movimento antiglobalização aos ludistas ingleses?


4ª O autor acredita que “mais globalização e não menos” ajudaria mais aos países pobres. Explique. Qual a sua análise pessoal?