A Revolução Centenária
    José Tadeu Cordeiro

 

 

Qual seria a comparação entre o mundo de 1880 e o dos anos 1780? Em primeiro lugar, em 1880 ele era genuinamente global. Quase todas as suas partes agora eram conhecidas e mapeadas adequadamente. A ferrovia e a navegação a vapor haviam reduzido as viagens intercontinentais ou transcontinentais a uma questão de semanas, em vez de meses e, em breve as tornariam uma questão de dias: com a conclusão da Ferrovia Transiberiana , em 1904, seria possível viajar de Paris a Vladivostok em quinze ou dezesseis dias. Com o telégrafo elétrico, a transmissão de informações ao redor do mundo era agora questão de horas. Em decorrência, homens e mulheres do mundo ocidental – mas não só eles – viajaram e se comunicaram através de grandes distâncias com facilidade e em número sem precedentes.

 

Ao mesmo tempo, o mundo era mais densamente povoado.Não deve ser muito equivocado supor que os, aproximadamente 1,5 bilhões de seres humanos vivos em 1880, representavam o dobro da população dos anos 1780.Os mais numerosos eram os asiáticos, mas enquanto em 1800 constituíam dois terços da população total, em 1900, talvez fossem 55%. A população européia era, em 1990, de 430 milhões, o dobro dos 200 milhões de 1800.Sua emigração em massa para o continente americano fez com este aumentasse de 30 milhões (1800) para 160 milhões (1900) – só na América do Norte a população pulou de 7 para 80 milhões neste século XIX. No final do século XVIII havia, talvez, três vezes mais africanos do que americanos – do norte e latinos – ao passo que no final do século XIX é provável que houvesse substancialmente mais americanos do que africanos.

 

Enquanto num sentido o mundo estava tornando-se demográfica e geograficamente menor e mais global, em outro sentido este mundo caminhava para a divisão. Em termos de produção e riqueza, para não falarmos de cultura, as diferenças entre as principais regiões pré-industriais eram, pelos padrões modernos, espantosamente mínimos: de 1 para 1,8. Mas no século XIX a defasagem entre os países ocidentais, base da revolução econômica que estava transformando o mundo, e os demais se ampliou, primeiro devagar, depois cada vez mais rápido. Ao redor de 1880 a renda per capita do mundo “desenvolvido” era cerca do dobro do 3º Mundo; em 1913 já era mais que o triplo; em 1950, já era 5 vezes superior.

 

A tecnologia era uma das principais causas desta defasagem, acentuando-a não só econômica como politicamente. Um século após a Revolução Francesa, tornava-se cada vez mais evidente que os países mais pobres e atrasados podiam ser facilmente vencidos (exceto se fossem muito grandes) e conquistados. Hobsbawn credita as conquistas coloniais dos séculos XV e XVI mais a crueldade e organização disciplinada dos europeus do que as suas armas. Contudo, a revolução industrial fez a batalha pender ainda mais a favor do mundo industrializado, graças aos “explosivos potentes, às metralhadoras e ao transporte a vapor”. Eis porque o período 1880-1930 é conhecido como a “diplomacia da canhoneira”.

 

Portanto, ao abordar 1880 estamos menos diante de um mundo único do que de dois setores que, combinados, formam um sistema global: o desenvolvido e o defasado, o dominante e o dominado, o rico e o pobre.

 

Enquanto o Primeiro Mundo, apesar de suas disparidades internas, era unido pela sua história e por ser o portador conjunto do desenvolvimento capitalista, o 3º Mundo – muito maior – não era unido senão por suas relações com o Primeiro, quer dizer, por sua dependência potencial ou real.

 

 

O 3º Mundo não era unido por sua história, cultura, estrutura social nem instituições, nem pelo que hoje consideramos a característica mais marcante do mundo dependente: a pobreza em massa. A riqueza e a pobreza, como categorias sociais, se aplicam em sociedades estratificadas de um certo modo e as economias estruturadas de uma certa maneira, e algumas partes do mundo dependente não tinham nem uma nem outra.

 

Todas as sociedades humanas conhecidas na história encerram algumas desigualdades sociais (além de desigualdade entre os sexos), de qualquer modo, havia partes privilegiadas no mundo – sobretudo nos trópicos – em que ninguém sentia falta de moradia, alimentos ou lazer, havia sociedades pequenas em que os conceitos de trabalho e lazer não tinham sentido, nem existiam palavras para dizê-los.

 

Se a existência de dois setores do mundo era inegável, as fronteiras entre eles eram indefinidas, sobretudo porque a conquista econômica – e política – do planeta foi conduzida pela Europa, não só pelos Estados desenvolvidos, mas também pela Península Ibérica e Itálica e pelos Impérios dos Habsburgos e dos czares (o autor cita a região da Dalmácia, onde, ainda em 1880, 88% da população era formada por analfabetos, enquanto na Baixa Áustria, somente 11% eram analfabetos. Toma a opinião de Metternich, comum a muitos de seus pares, de que “a Ásia começa onde a estrada para o Oriente sai de Viena”).

 

Nos anos de 1880, a Europa, além de ser o centro original do desenvolvimento capitalista, que dominava e transformava o mundo, era, de longe, a peça mais importante da economia mundial e da sociedade burguesa. Embora a posição futura dos EUA como superpotência já estivesse assegurada pelo ritmo e pelo ímpeto de sua industrialização, o produto industrial europeu era ainda duas vezes maior que o americano e os principais avanços tecnológicos provinham da Europa: os automóveis, o cinema e o rádio foram inicialmente desenvolvidos na Europa.

 

Quanto a cultura erudita, o mundo ultramarino era dependente do velho continente. Culturalmente a Rússia de Dostoievsky (1821-1881), de Tolstoi (1828-1910), de Tchekov (1860-1904), de Taikovisky (1840-1893) era uma grande potência enquanto os EUA de Mark Twiain (1853-1910) e Walt Whitmam (1819-1892) não.

 

A cultura e vida intelectual ainda estavam nas mãos de uma minoria próspera e culta. A contribuição do liberalismo e, mais além, da esquerda ideológica foi exigir que todos passassem a ter livre acesso as realizações dessa cultura de elite. O museu e a biblioteca pública foram suas conquistas características. A cultura americana, mais democrática e igualitária, só assumiu uma posição própria na era da cultura de massa.

 

Se uma parcela do Primeiro Mundo podia ser enquadrada na zona de dependência e atraso, praticamente todo o 3º Mundo a integrava, à exceção do Japão, que passava por um processo de “ocidentalização” sistemática desde 1886 (cap. A Era do Capital) e de territórios ultramarinos povoados por grande número de descendentes europeus. Foi essa dependência que reuniu na mesma categoria, de vítima da história do século XIX em relação àqueles que a implementavam, sociedades que fora isso não tinham nada em comum.
Que importava que suas artes fossem admiráveis, que os monumentos de suas culturas ancestrais fossem maravilhosos e que sua filosofia – sobretudo religiosas – impressionavam tanto ou superavam o cristianismo para alguns acadêmicos e poetas ocidentais? Basicamente, estas sociedades estavam todas igualmente a mercê de navios que vinham do exterior com carregamento de bens, homens armados e idéias diante das quais ficavam impotentes e que transformaram seus universos como convinha aos invasores, independentemente dos sentimentos dos invadidos.

 

 

O mercado capitalista mundial no século XIX gerou, dentro dele, centros urbanos desproporcionalmente grandes, através dos quais era canalizado o fluxo de suas relações econômicas: Melbourne, Buenos Aires e Calcutá tinham cerca de meio milhão de habitantes cada uma em 1880, o que ultrapassava a população de Amsterdã, Milão ou Munique, ao passo que os 750 mil habitantes de Bombaim só eram superados por meia dúzia de cidades européias.

 

Apenas em 6 países europeus a agricultura empregava menos que a maioria da população, mas era o centro capitalista: Bélgica, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Holanda e Suíça. Entretanto, era só na Grã-Bretanha que a agricultura ocupava 1/6 da população, nos outros países empregava de 30 a 45%.

 

A implantação da indústria não se restringia inteiramente ao Primeiro Mundo. A parte a construção de uma infra-estrutura (portos e ferrovias), as atividades extrativistas (mineração) e a produção rural, algumas indústrias do tipo ocidental do século XIX tendiam a se desenvolver modestamente em países dependentes, como a Índia, por vezes enfrentando forte oposição de interesses metropolitanos, sobretudo têxteis e alimentícios. Mas até a metalurgia penetrou no 3º Mundo – a empresa indiana Tata, iniciou suas operações nos anos de 1880.

 

Enquanto nenhum país fora do mundo “desenvolvido” (e do Japão que se somou a ele) podia ser descrito como industrializado, pode-se dizer que mesmo os países “desenvolvidos” que ainda eram predominantemente agrícolas já estavam em sintonia com a sociedade industrial e a alta tecnologia.

 

E, o que ainda é mais óbvio, podemos descrever o mundo “avançado” como um mundo em rápido processo de urbanização. Em 1800 havia apenas dezessete cidades na Europa cuja população era de 100 mil habitantes ou mais (menos de 5 milhões de habitantes). Em torno de 1890 havia 103 cidades com mais de 100 mil habitantes e com uma população total com mais de 30 milhões de habitantes.

 

JT Cordeiro adaptou de Eric Hobsbawn, A Era dos Impérios.

 


 

Interpretando o texto

1ª Qual a comparação possível entre o mundo de 1780 (revolução industrial) e o mundo do final do século XIX?


2ª Explique os dois mundos, que no final do século XIX formavam um sistema global. Como Hobsbawn analisa as culturas das comunidades pré-industriais? Como ele entende conceitos como trabalho e lazer?


3ª Comente o processo de urbanização e migração, tão importante no período.