Pobreza, e não religião é o traço mais comum entre os muçulmanos

Guy Sorman

 

 

Um bilhão de muçulmanos inquietam o Ocidente. Mas o que eles realmente compartilham? Certamente o Corão – e também a pobreza em massa. Essa ausência do desenvolvimento econômico me parece, entre eles, um denominador ainda mais forte do que o Corão. Na verdade, se nos limitarmos a uma abordagem estritamente religiosa do mundo muçulmano, a unidade dos muçulmanos é pouco perceptível.

 

A Umma, ou comunidade dos fiéis, existe sobretudo teoricamente; no curso de sua história, os muçulmanos combateram mais vezes entre eles do que juntos contra um inimigo comum, que seria o Ocidente. Essa comunidade dos fiéis tem uma importância pequena porque as fidelidades étnicas , culturais, tribais, nacionais e lingüísticas são mais fortes dentro do mundo muçulmano do que a fidelidade religiosa. Um muçulmano javanês é, acima de tudo, javanês e é mais próximo de um  javanês não muçulmano do que de um muçulmano egípcio.

 

Os muçulmanos da Índia, em primeiro lugar, participaram da civilização indiana, em seguida, pertencem a uma comunidade local organizada em volta do culto a um santo, e o Islã vem depois. O mesmo acontece na África negra, onde o Islã é mais enraizado em uma língua ou uma cultura tribal do que universal. Mas essa infinita fragmentação do mundo muçulmano foi reduzida.

 

Há mais ou menos 30 anos, uma forte tendência a reunificação, sob o pretexto do islamismo, ultrapassa as antigas fronteiras culturais. Esse novo universalismo se deve ao Corão ou às circunstâncias econômicas que permitem recrutar fundamentalistas?

 

O islamismo, que não coincide tanto com o Islã quanto com o mundo árabe, afetaria pouco os afegãos, se estes fossem desenvolvidos e financiados por sauditas ou famílias do Golfo Pérsico. Do mesmo modo, no Paquistão ou na Índia, as escolas corânicas e as mesquitas fundamentalistas são todas financiadas pelo mundo árabe e administradas por teólogos dele provenientes.

 

Tradições Locais – No entanto, não se pode negar que o islamismo árabe seja cada vez menos dominado pelas tradições locais, e que ele progrida, do Marrocos às Filipinas. Os islâmicos, é verdade, podem pagar sua conquista com o dinheiro do petróleo. Mas também propõem ao mundo islâmico  uma explicação simples para sua pobreza em massa: se os muçulmanos são pobres, é porque os ocidentais são ricos.

 

Além disso, os muçulmanos pregam uma alternativa para o desenvolvimento; o Corão ofereceria uma solução econômica e bastaria seguir seus preceitos para alcançar e ultrapassar os ocidentais. Desse discurso, os bancos islâmicos que se encontram nos Estados do Golfo, no Sudão e no Paquistão são a única manifestação, sem resultado convincente. Mas não há no mundo muçulmano – e, sobretudo, no mundo árabe muçulmano -, uma tentativa de explicar de maneira racional esse fracasso econômico. Na falta dessa, apresentaremos aqui duas hipóteses que se devem às observações de área e ao exegeta do Corão Jacques Berque.

 

Berque propunha uma explicação histórica e intelectual da pobreza dos muçulmanos. O Islã, segundo ele, foi uma religião aberta desde as suas origens até o fracasso econômico do mundo árabe no século XIV; essa ruína foi provocada pela Marinha européia, que teve acesso diretamente às riquezas da Ásia, evitando o comércio árabe. Conseqüentemente, as instituições políticas se arruinaram e o poder foi tomado por autoproclamados doutores da lei, que confiscaram em seu benefício à leitura e a interpretação do Corão. Sob a dominação dessa “mulácracia” (governo dos mulás), o Islã se fechou, e o espírito crítico desapareceu no mesmo momento em que esse espírito se impôs no mundo cristão com o Renascimento e a Reforma.

 

Se admitirmos que o espírito crítico é o fundamento da inovação científica e da aventura econômica, deduziremos que o fechamento do Corão e a abertura da Bíblia coincide com o empobrecimento dos muçulmanos e com a prosperidade dos cristãos.

 

Jacques Berque juntou-se aí a todos os economistas que atribuem um papel essencial à relação entre cultura e desenvolvimento: o amplo olhar do mundo condicionaria a dominação do mundo. Eis por que inúmeros intelectuais muçulmanos tinham esperança na reabertura de uma interpretação crítica do Corão. Sem êxito: foram imediatamente proibidos e até mesmo exterminados pelos doutores da lei, que temiam um enfraquecimento de sua autoridade.

 

Não só o islamismo não teve o seu Vaticano II, como ele espera um Erasmo que sobreviva a uma fatwa (um édito religioso islâmico). O congelamento do Islã é, então, menos teológico que teocrático.

 

Política – Complementaria e não entraria em contradição com Jacques Berque, afirmando que são as instituições políticas, mais que o Corão, que fecham o mundo muçulmano na pobreza em massa (distinguindo, obviamente, a prosperidade de poucos indivíduos , tão típica do subdesenvolvimento das nações).

 

Na realidade, no Ocidente, o desenvolvimento econômico baseia-se em dois pilares: o espírito crítico e a dualidade das instituições. Onde o poder político, religioso e econômico é um só, o desenvolvimento não aparece. Em compensação, se é permitido aos empreendedores criar atividades sem referência às autoridades religiosas ou políticas e obedecendo apenas a critérios econômicos, o desenvolvimento acontece.

 

 

Constatamos que, no mundo ocidental, foi exatamente nos locais em que a autoridade do papa se distinguiu da do rei e quando uma burguesia autônoma surgiu que se tornou possível criar empresas.

 

Ao contrário, no mundo cristão ortodoxo em que a separação dos poderes foi mais tardia, o desenvolvimento econômico foi bloqueado; as nações ortodoxas ficaram, assim, no meio do caminho entre o mundo católico e protestante e o mundo muçulmano.

 

A ausência de distinção entre os poderes é ainda mais radical na tradição árabe-muçulmana em nome de uma interpretação literal do Corão e em memória da teocracia de Maomé e de seus sucessores imediatos, considerada um modelo intransponível.

 

Se aceitarmos essas hipóteses como uma explicação plausível da pobreza em massa no mundo muçulmano e se admitirmos que o islamismo prospera devido a essa pobreza, conter e reprimir o islamismo tornaria obrigatória uma solução econômica. Ela seria tão desejável quanto difícil de ser realizada. Como incitar os teólogos a criticarem a si próprios? Como fazê-los aderir a uma interpretação liberal do Islã, e até mesmo a um Islã laico? Como restaurar os direitos das mulheres no Islã?

 

Erros – Um texto tão denso como o Corão teoricamente o permitiria, pois não é, em si, fechado; Bourguiba, na Tunísia, dedicou-se a reabri-lo, mas caiu no anticlericalismo que levou a sua rejeição. Mustafá Kemal cometeu o mesmo erro: confundindo o Islã e “mulácracia” como obstáculo à modernidade, suscitou entre os turcos um choque de fundamentalismo.

 

Em compensação, o antigo presidente Wahid, na Indonésia, colocou-se numa linha mais fina, tentando conciliar um Islã liberal com o progresso econômico. Mas foi rapidamente abandonado pelos ocidentais, um abandono que lembra o xá do Irã; ele também havia pensado, melhor que os ocidentais, que a modernização de seu país passava pela redução da “mulácracia” conservadora.

 

Certamente, não existe no mundo muçulmano um exército  de reserva de teólogos esclarecidos dispostos a tomar o poder espiritual e, evidentemente, não chegariam a ele se fossem designados pelo Ocidente. No entanto, seria permitido aos ocidentais reconhecer entre os dirigentes do mundo muçulmano aqueles que fossem suscetíveis de conciliar o Corão com o desenvolvimento e aqueles que fossem incapazes disso.

 

Ora, se examinarmos as referências corânicas e econômicas dos aliados e dos atuais clientes do Ocidente no mundo muçulmano, nenhum desses critérios parece satisfeito. Nossos governos aliados são contestados por seu povo por sua fraqueza espiritual e, ao mesmo tempo, por seu fracasso econômico. Muito freqüentemente o Ocidente apóia tiranos que dão prova de antiislamismo, sem nos inquietarmos com seu fracasso econômico e moral.

 

Em nome da luta a curto prazo contra o islamismo, reforça-se, então a base de recrutamento a longo prazo. Na patética revisão diplomática que surgiu com os acontecimentos em Nova York, escolher melhor nossos amigos não garantiria o desenvolvimento do mundo muçulmano, mas, pelo menos, cuidaríamos de não perpetuar a pobreza por aproximações circunstanciais com determinados tiranos que,  como os fundamentalistas, provocam a infelicidade de seu povo.

 

1.      Por que o autor afirma que a unidade do mundo muçulmano é menos perceptível? Qual é o traço mais perceptível?

 

2.      Como o autor analisa a tendência a uma universalização do mundo muçulmano ocorrida nos últimos 30 anos?

 

3.      Como “esse” islamismo se relaciona comas tradições locais? Como ele  tem explicado a pobreza do mundo islâmico? Como  propõe superar essa pobreza?

 

4.      Qual a explicação de Jacques Bergue para a pobreza do mundo muçulmano? Como o autor relaciona o “fechamento” do islamismo ao Renascimento do Ocidente?

 

5.      Como se deu o desenvolvimento econômico do Ocidente? Por que o intervencionismo religioso na política árabe muçulmano seria sinônimo de manutenção da pobreza?

 

Como o autor analisa a escolha dos amigos (governantes) do Ocidente (leia-se EUA) no mundo muçulmano? Qual a recomendação do autor na escolha de novos amigos (governantes) muçulmanos?