Quem são os talebans

Lourival Sant'Anna

 

 

 Nós,os ocidentais, nos habituamos a pretender entender os outros com base nos nossos conceitos e objetivos. Na maior parte dos casos funciona: nossos valores e desejos, dos mais nobres aos mais torpes, predominam na aldeia global. Daí que encontrar um grupo de pessoas como os talebans afegãos seja uma experiência profundamente desconcertante: eles não pensam como nós, não são nem desejam ser o que somos.

 

Quem são, afinal, esses exóticos barbudos de turbante, que se regozijam diante da própria desgraça iminente e parecem burlar-se das ameaças mais sérias, dos ultimatos mais fatais? Os talebans, ou estudantes, em idioma pashto, são ex-seminaristas de escolas teológicas, chamadas de madrassas, no Paquistão. Muitos foram parar nesses seminários não por escolha, mas pela falta de. São filhos de refugiados da guerra contra os invasores soviéticos (1979-89), ou órfãos de afegãos que morreram nela.

 

As madrassas, sustentadas pelo governo do Paquistão e da Arábia Saudita, entre outros doadores interessados na propagação do Islã, representaram para os talebans, comida, roupas, cuidados, proteção e uma profissão futura – a de mula (sacerdote) numa mesquita ou professor de teologia. Nelas, durante nove anos, os talebans aprenderam a fazer uma leitura literal do Corão e a sonhar com a utopia islâmica  de um emirado como aquele que o profeta Maomé  criou na Península Arábica, 1400 anos atrás. Os mais velhos passaram a ensinar nas madrassas e até a fundar novas escolas.

 

No inicio dos anos 90, depois de conseguirem o impossível – a derrota da superpotência soviética -, os clãs afegãos, armados até os dentes com ajuda paquistanesa e americana e com o espólio do inimigo russo, passaram a guerrear entre si. O Afeganistão se libanizou e se desfez como país. Os afegãos partiram para acertos de contas ancestrais e para o controle feudal de pequenas áreas.

 

O território, crucialmente localizado, entre o Paquistão e o Oceano Índico, de um lado, e a Ásia Central rica em petróleo e liberada do império soviético, de outro, tornou-se praticamente intrafegável, com cada senhor da guerra impondo seus pedágios e regras.

 

Os talebans de origem afegã das madrassas paquistanesas assistiram a tudo de longe. Muitos saíram de seu país, pequenos e não o conheciam. Mas começaram a imaginar que poderiam pôr em prática na terra de seus pais a utopia islâmica que acalentaram ingenuamente nas redomas em que viviam. No âmago de seus pensamentos e sentimentos pulsava o conceito de jihad – a guerra santa, dever moral de  todo o muçulmano para salvar sua terra ou religião.

 

Quando os talebans começaram a arregimentar-se para enfrentar os senhores da guerra afegãos, não passavam de jovens românticos, despreparados para a luta desigual. Mas contaram com três trunfos que os tornaram virtualmente invencíveis: a fé inabalável, tornando a morte na jihad à glória suprema; o impasse e a exaustão dos afegãos imersos numa guerra civil insolúvel; e, por último, a ajuda do governo paquistanês, que identificou nos talebans a chance de desbloquear as estradas afegãs, estabilizar o país e instalar um regime amigável em Cabul. Afinal, os talebans eram mais paquistaneses do que afegãos.

 

Desiludidos e fatigados, os afegãos comuns se impressionaram com a pureza de propósitos, a retidão e a coragem daqueles jovens exóticos. E aderiram ao seu projeto de reunificar o país sob o jugo do Islã com a fé messiânica que caracteriza o desespero. O avanço militar fulminante desses estudantes destreinados e desordenados parecia comprovar um desígnio divino. Muitos milicianos inimigos se renderam sem lutar e se juntaram aos talebans. As quatro principais cidades afegãs caíram como peças de dominó: Kandalar, ao sul, em 1994; Herat, a oeste, em 95; Cabul, no centro-leste, em 96 e finalmente Mazar-i-Sharif, ao norte, em 97.

 

 

Taleban e afegãos eram estranhos uns para os outros. Conforme consolidavam o domínio sobre o país, os talebans iam mostrando que eram e a que vinham. Em principio, o rigor com que impunham os preceitos islâmicos, o tratamento implacável reservado aos opositores, criminosos e violadores desses preceitos, foram recebidos com resignação pela população, como o preço a pagar para restituir a ordem e a decência ao país, depois de duas décadas e meia de violência e de desatino: em duas passagens nunca esquecidas, que marcaram o início do movimento taleban, o mulá Mohammad Omar, liderando um pequeno grupo de seminaristas, salvou uma adolescente e um rapaz da sevícia por milicianos ensandecidos. Histórias como essa, de bravura e piedade, espalharam-se pelo país.

 

Mas não demorou muito para que os afegãos se dessem conta da natureza daquele regime. A primeira providência dos novos governantes foi retirar as mulheres do convívio social, não tanto por razões religiosas – que sem dúvida legitimaram a medida. Mas porque simplesmente não sabiam o que fazer com as mulheres, como lidar com elas. Muitos talebans não experimentaram convívio com a mãe ou irmãs. Nas Madrassas, a ala masculina é hermeticamente separada da feminina – quando ela existe.

 

As mulheres são para os talebans seres misteriosos, que representam a ameaça do desconhecido. Foram expulsas das escolas e dos locais de trabalho, obrigadas a vestir a burka, que as cobre completamente, e a confinar-se no interior das casas. Da vida nas madrassas, muitos talebans trouxeram a prática do homossexualismo entre mestres e pupilos, reproduzido nos acampamentos dos milicianos e estendido a vida à paisana. O sexo com a mulher se restringe à reprodução. O prazer se dá entre os homens.

 

Assim como as mulheres, as crianças desapareceram das ruas. Os meninos se dedicam integralmente aos árduos estudos religiosos; as meninas ao confinamento doméstico. Os esportes foram inicialmente banidos. Depois o regime autorizou o críquete, esporte nacional, e o futebol, mas sob limites e vigilância estrita. Há regras sobre como torcer. Quando o jogador avança, deve-se gritar “Deus é grande” ou interjeição religiosa equivalente.

 

A televisão também foi banida, com base na interdição corânica ao uso da imagem. A única emissora de rádio era a Sharia (lei islâmica), dos talebans que só levava ao ar notícias filtradas pelo regime, pregações e orações, antes de ter suas antenas retransmissoras destruídas pelos bombardeios americanos. É proibido ouvir música, dançar, fazer festa – em síntese, divertir-se. Circulam no país tablóides sem ilustrações, com as mensagens do governo.

 

Os talebans reproduziram no Afeganistão o isolamento que viveram nas madrassas, repudiando as informações sobre o mundo exterior como fúteis distrações de sua elevada missão. Só recentemente, quando os EUA lhes declararam guerra, os talebans se deram o trabalho de instalar uma antena parabólica no quartel-general do regime em kandahar, para ouvir o que o mundo estava falando deles. E autorizaram que a emissora Al-Jazeera, do Catar, mantivesse uma equipe no país para transmitir suas mensagens ao mundo.

 

A utopia taleban significou um rolo compressor sobre a cultura e a sociedade afegãs. O Afeganistão é uma nação de 20 tribos, que são conjunto de clãs ou grandes unidades familiares, resultantes da prática milenar de casamentos entre primos. Cada clã tem seu líder, cada tribo seus costumes. O Emirado Islâmico do Afeganistão, que os talebans fundaram com inspiração naquele criado por Maomé, é um projeto de homogeneização do país sob a regra única da Sharia. Nele,  não cabem as idiossincrasias tribais, suas festas sazonais, seus tambores, suas formas de celebrar a vida.

 

Na repressão a cultura tribal e no rebaixamento do poder dos chefes de clãs, pode estar a semente da dissolução do regime. Na própria cúpula dos talebans, os laços familiares estão esmaecidos, mas não totalmente esquecidos. O mulá Mohammad Omar pertence ao clã Guilzei, do qual por sinal era um obscuro membro, na condição de sacerdote e diretor de uma madrassa no vilarejo de Singesar, perto de Kandahar, antes de se juntar ao movimento taleban, destacar-se na jihad e tornar-se líder supremo do regime.Já o número dois do taleban, Mohammad Wuaqil Muthawaqal, ministro das Relações Exteriores, é membro do clã Durrani, que, no passado, guerreou com os Guilzeis na disputa de terras na região de Kandahar.

 

Com a instalação dos talebans no poder, essa diferença de clãs passou a servir de rótulo para uma distinção de fundo ideológico. A fração do mulá Omar, considerada de linha dura, cultiva laços estreitos com os grupos árabes que se instalaram no Afeganistão nos anos 80 para ajudar a expulsar o invasor soviético. Uma de suas filhas é casada com o saudita Osana bin Laden. Já os Durranis são identificados como mais moderados e inconformados com o fato de o Afeganistão ter-se tornado um santuário do terrorismo árabe.

 

O serviço secreto americano acalenta a idéia de cooptar os moderados no esforço para quebrar à espinha dorsal do regime.A aposta é a de que a chance de protagonismo num futuro arranjo político atraía a dissidência da cúpula.

 

O sucesso ou o fracasso desse plano dependerá da correlação imponderável de duas forças opostas, de um lado, o apelo ancestral e instintivo dos vínculos tribais; de outro, o sonho geracional de um Afeganistão unido sob a égide do Islã. Noutras palavras, é a questão de saber se a campanha militar americana reforçará a coesão recente dos talebans ou reeditará a divisão histórica das tribos afegãs – ainda que para reagrupar-se num novo governo de coalizão nacional, no cenário mais otimista.

 

Na longa e turbulenta história afegã, os talebans podem estar destinados a desaparecer de maneira tão brusca quanto surgiram, como uma extravagante miragem entre as montanhas de seu acidentado deserto.

O Estado de São Paulo, 14.10.01 pp. A 18

 

1.      Quem são os talebans? O que as Madrassas representaram para esses seminaristas?

 

2.      O que os talebans aprenderam nessas madrassas? Qual a habilitação desses estudantes e onde eles poderiam trabalhar após o curso?

 

3.      Como os afegãos se “organizaram” após a vitória contra os soviéticos?

 

4.      Qual a localização geográfica do Afeganistão? Qual a riqueza dos países vizinhos?

 

5.      Qual a análise que os talebans fizeram da crítica situação da terra de seus pais, após a expulsão dos soviéticos? O que eles propõem?

 

6.      Como os afegãos se sentem diante da luta dos talebans para controlar o Afeganistão? Ao que o autor atribui a vitória dos talebans?

 

7.      Quais as mudanças colocadas em prática pelos vitoriosos talebans? Quais os papéis da mulher e das crianças na nova sociedade afegã controlada pelo taleban?