O resplandecente ano 2000 dos quadrinhos e da ficção científica

         Criativos, os autores sonhavam com um futuro extravagante e computadores enormes

    JOTABÊ MEDEIROS

    O verso é de Renato Russo, mas se aplica como uma luva à nossa tese: o futuro não é mais como era antigamente. Para grande parte dos escritores de pulp fiction e para os autores de comics dos anos 30 e 40 - era de ouro do gênero - o futuro chegaria com o ano 2000 e seria resplandecente.

    Os mais imaginativos autores do futuro que não se realizou eram os autores de quadrinhos, dois deles em especial: Alex Raymond (o autor de Flash Gordon) e Dick Calkins (o criador de Buck Rogers). Em Flash Gordon, as cidades eram art déco e as moças usavam minissaias bem antes de Mary Quant. A Nasa frequentemente pedia cópias das provas de Alex Raymond para usar em pesquisas de aerodinâmica.

    Buck Rogers não tinha a sofisticação de Flash Gordon, mas seu insight era o mesmo. Não bastava imaginar o homem em uma odisséia espacial, mas era preciso criar um décor adequado para o futuro. Então, vinha aquela proliferação de luzes imensas piscando, pessoas vestidas de roupas prateadas, coiffures extravagantes e tudo muito colorido, além de computadores do tamanho de ginásios (engenhocas pré-mecânicas, já que o computador só seria inventado em 20 anos).

    "Perigo, Will Robinson! Perigo", anunciava o robô-babá de Perdidos no Espaço com sua voz metálica. A frase preconizava uma nova era para o expansionismo humano, anunciando que a próxima meta do homem seria estabelecer-se no espaço, em fazendolas espaciais. Corria o ano de 1997 (na ficção, já que o seriado era dos anos 60). Mas o novo grito dos pioneiros não foi ouvido na década seguinte, os anos 70, nem nos 80, nem nos 90... Passou 1997 e nós ainda não estamos criando gado clonado em Marte.

    "As diferenças gerais entre fantasia e ficção científica podem estabelecer-se com respeito a quatro conceitos: verossimilhança, conexão, temporalidade e moralidade", diz o arquiteto Josep-Maria Montaner em artigo primoroso incluído no livro Arquiteturas Fantásticas (lançado na Bienal Internacional de Arquitetura).

    A própria ficção científica demorou para descobrir que a união desses quatro conceitos descritos por Montaner resultariam naquilo que viríamos a conhecer como obra-prima do gênero. Durante muito tempo, a ficção científica era uma aventura de homens comuns em busca de realizar um feito então mitológico - como chegar à Lua. Isso começa lá com Dante Alighieri (1265-1321), no seu romance Paraíso, passando por Cyrano de Bergerac (1619-1655, no romance Viagens à Lua e ao Sol e vem até Júlio Verne (1828-1905), em dois livros: Da Terra à Lua e Em Torno da Lua.

    Mas é só já na civilização "maquinista" de H.G. Wells (1866-1946), em O Primeiro Homem na Lua, que a coisa começa a adquirir contornos de verossilhança associadas à moralidade. Com Arthur Clarke, na história A Sentinela - que deu origem a 2001, uma Odisséia no Espaço - , unem-se os outros conceitos descritos por Montaner em seu ensaio. Ali no conto de Clarke, a humanidade descobre sinais de que não está sozinha no universo. O avanço científico traz de volta as questões essenciais: quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

    Para muitos dos autores que vieram depois, como Philip K. Dick e seu romance O Caçador de Andróides - escrito em 1975 e que deu origem ao clássico precoce Blade Runner, de Ridley Scott -, a questão existencial chegaria ao seu esgotamento num futuro não muito distante. Em Blade Runner, esse esgotamento se dará em 2019 e o cenário é cinzento. Mas pelo menos numa coisa tudo permanece imutável: os anos-chave da espécie humana serão os primeiros anos do terceiro milênio.

    Assim como os filmes, os quadrinhos e a ficção, a ciência também evoluiu, libertando-se dos limites rígidos do racionalismo cientificista que a caracterizavam com muita freqüência no século passado. Discute-se agora bioética e jurisprudência adequadas para as novas demandas. Deixou-se de acreditar cegamente nos benefícios que adviriam do progresso. Os cientistas se questionam sobre a moral, o sentido e a sabedoria que convêm a suas descobertas. Flash Gordon e o planeta Mongo são apenas ecos de um passado brilhante e aventuroso.