Stephen Hawking, o gênio que devassa o universo

Bem-humorado e teimoso, ele usa a física para revelar a mente matemática de Deus

NIGEL FARNDALE - Daily Telegraph
 

   

    A sala de Stephen Hawking em Cambridge é gelada e a janela fica sempre aberta porque, segundo um assistente, "o professor pensa melhor no frio". Tento controlar o bater dos meus dentes e pergunto se um dia poderemos viajar a velocidades superiores à da luz. "Jamais, porque, se isso ocorresse, viajaríamos de volta no tempo e nunca encontramos turistas do futuro por aí. Viagens interestelares serão algo lento e bastante tedioso, algo como 100 mil anos de viagem para chegar ao centro da galáxia. Nesse intervalo de tempo a raça humana teria sofrido tamanhas modificações que seria irreconhecível, se não tiver desaparecido, é claro." E os seres humanos vão um dia alcançar um estágio definitivo em termos de conhecimento? Click, click, click. "Nos próximos cem anos podemos desenvolver uma teoria completa sobre as leis básicas do universo (a chamada teoria unificada, em que a teoria quântica é unida à teoria geral da relatividade de Einstein), mas não há limite para a complexidade dos sistemas biológicos e eletrônicos que podemos construir a partir dessas leis", explica. Preparo nova pergunta, mas antes que possa formulá-la, ele prossegue. "O sistema mais complexo que conhecemos é o nosso corpo e não houve alterações significativas em nosso DNA nos últimos 10 mil anos. Em breve, porém, poderemos aumentar a complexidade de nosso DNA, sem ter de esperar pelo lento processo da evolução biológica. É provável que possamos redesenhá-lo dentro de mil anos, aumentando o tamanho de nosso cérebro, por exemplo."

    Tempo relativo - O tempo é ainda mais relativo na presença de Stephen Hawking e parece desacelerar-se no intervalo entre minha pergunta e sua resposta. Somos interrompidos por uma enfermeira que pede que me retire da sala. Desde que o professor teve de operar o esôfago em 1998, ele não tem mais tantos problemas com a comida que ia parar em seus pulmões, mas ainda precisa de sucções regulares para evitar riscos. Quando volto, a enfermeira está fazendo o físico engolir comprimidos às custas de golinhos de chá, que ensopam o babador colocado em torno de seu pescoço.

    Pergunto se a criação de seres humanos aperfeiçoados por engenharia genética não vai causar grandes problemas políticos e sociais em relação aos não-aperfeiçoados. "Não estou defendendo o uso de engenharia genética para melhorar a espécie humana, só digo que é provável que isso aconteça e precisaremos lidar com isso. A raça humana precisa melhorar suas capacidades físicas e mentais se quiser lidar com o mundo cada vez mais complexo a sua volta e enfrentar novos desafios, como as viagens espaciais, por exemplo. Precisamos ficar mais complexos se quisermos que os sistemas biológicos estejam no mesmo pé que os eletrônicos. Por enquanto, os computadores têm a vantagem da rapidez, mas não são inteligentes, têm a complexidade de um cérebro de minhoca, uma espécie que não é famosa pelos seus méritos intelectuais. Mas a velocidade e a complexidade dos computadores dobra a cada 18 meses e isso vai continuar até que eles tenham uma complexidade semelhante à do cérebro humano", compara.

    Circuitos complexos - Mas os computadores serão mesmo inteligentes um dia? "Bem, se moléculas químicas complicadas podem fazer com que os seres humanos sejam inteligentes, então circuitos eletrônicos igualmente complexos podem agir de forma inteligente. E se forem inteligentes podem projetar computadores ainda mais inteligentes e complexos."

    Na companhia de Hawking, as leis de interação social são revogadas. Não há linguagem corporal para ser interpretada, exceção feita a seu sorriso largo e ao brilho de seus olhos. Quando pergunto se o aumento na complexidade biológica e eletrônica vai prosseguir para sempre ouço outra vez o click, click, click frenético.

    "Em termos biológicos, os limites da inteligência humana são dados pelo tamanho do cérebro que deve passar pelo canal de parto. Vi meus três filhos nascer e sei como é difícil aquela cabeça passar por ali, mas nos próximos cem anos acho que vamos aprender a fazer bebês crescerem fora do ventre materno, o que elimina essa restrição. Mas mesmo se o cérebro crescer graças à engenharia genética, vamos enfrentar o problema de que as mensagens químicas responsáveis pela nossa atividade mental são relativamente lentas. Ou seja, podemos ser muito inteligentes ou ter respostas rápidas, mas não os dois", explica, acrescentando que os computadores têm o mesmo problema, ou são rápidos ou são complexos. A velocidade, como sempre, esbarra no limite da velocidade da luz.

    Limites naturais - Uma solução, diz ele, é fazer os circuitos cada vez menores, o que vai enfrentar o limite da natureza atômica da matéria. "Outra maneira de os circuitos eletrônicos aumentarem sua complexidade e manter sua velocidade é copiar o cérebro humano, que tem milhões de processadores trabalhando ao mesmo tempo. Esse modelo será o futuro da inteligência eletrônica", vaticina.

    Vamos fazer contato com alienígenas no século 21? Ele sorri e responde depois de 7 minutos. "A espécie humana tem essa forma há 2 milhões dos 15 bilhões de anos transcorridos desde o Big Bang; assim, mesmo se a vida se desenvolveu em outros sistemas estelares, as chances de reconhecê-la nesse estágio é bem remota. Qualquer outra forma de vida será ou muito primitiva ou muito mais avançada do que nós. E se for muito mais avançada, por que não se disseminou pela galáxia e visitou a Terra? É possível que haja por aí alguma civilização avançada que sabe de nossa existência, mas nos deixe aqui cozinhando em nosso caldo primitivo. Mas duvido que tivessem tanta consideração por uma espécie primitiva como a nossa. Há uma história de que a razão de ainda não termos feito contato com extraterrestres é que quando uma civilização atinge nosso estágio de desenvolvimento ela se torna instável e se autodestrói. Mas sou otimista, acho que podemos evitar as guerras nucleares e o juízo final."

    Hawking tem dez enfermeiras que cuidam dele. Acorda às 7h45, faz fisioterapia, chega para trabalhar ás 11h30, volta para casa às 19, é banhado e posto na cama à meia-noite. Segundo uma de suas enfermeiras, ele é um amor, raramente se queixa e detesta que tenham pena dele. Um de seus amigos, o médico David Schramm, ele é um paquerador incorrigível. Sua filha Lucy conta que ele tem uma incrível capacidade de levar todos a sua volta à beira do colapso físico e mental, mas sempre com um sorriso nos lábios. Ele é famoso por seu senso de humor: costuma fazer piadas sobre o sotaque americano de seu sintetizador de voz e sobre suas aparições em seus dois programas de TV favoritos, Os Simpsons e Jornada nas Estrelas. Só não tolera os tolos. Pergunto se é verdade que usa sua cadeira de rodas para atropelar tolos incômodos. "Puro boato. Atropelo qualquer um que repetir uma coisa dessas."

    Na sala, além da foto de Marilyn Monroe, há um calendário com a atriz, um equipamento de karaokê, um relógio com Homer Simpson na parede e um pôster com o personagem dizendo: "Cada vez que aprendo algo novo, alguma coisa antiga sai do meu cérebro." Na porta, um adesivo diz: "Silêncio, o chefe está dormindo."

    Nas parteleiras, há fotos dos filhos e do neto de Hawking. Ele costuma dizer que a coisa que mais lamenta sobre sua paralisia é não ter podido brincar com os filhos quando eram pequenos. Lucy conta que, para compensar, o professor costumava fazê-la rir movendo as orelhas durante as refeições. Há dezenas de livros nas estantes com títulos como A Mão Esquerda da Criação, Buracos Negros em Duas Dimensões e Cosmologia de Partículas, mas nem sinal de Uma Breve História do Tempo, o best seller que escreveu em 1988. No livro, ele tentou explicar para o público leigo sua teoria sobre as origens do universo. Embora pouca gente tenha conseguido passar dos primeiros 12 capítulos, a obra foi traduzida para 65 idiomas e fez dele um homem rico e famoso. Famoso o bastante para cobrar cerca de US$ 75 mil por uma palestra e US$ 150 mil para aparecer num comercial. Suas empreitadas comercais lhe rendem cerca de US$ 1,6 milhão por ano.

    "Posso ter sucesso no meu trabalho, mas não sou rico como o pessoal do mercado financeiro e, além disso, para ter uma vida relativamente normal preciso de uma equipe de enfermagem, e a previdência não paga por isso", diz.

    Vida atribulada - Em 1995, Hawking divorciou-se de sua mulher, Jane, e casou-se com sua enfermeira Elaine, ex-mulher do homem que inventou seu sintetizador de voz. A vida particular do cientista é bem tumultuada. No ano passado, Elaine escreveu um livro dando até mesmo detalhes sobre a vida sexual do casal. Elaine descreve Hawking como um "manipulador cruel" transformado em déspota pela atenção do público e da doença. No início dos anos 90, ainda casada, Elaine começou a ter um caso com um maestro, que acabou se mudando para a casa dos Hawkings.

    Mas quando a casa foi invadida por uma equipe de enfermeiras, Elaine começou a queixar-se de que elas se vestiam de forma provocante e tentavam manipular seu marido emocionalmente. Ele diz que nunca leu o livro e admite que há aspectos da fama bastante desagradáveis. "Mas seria hipócrita da minha parte me queixar; simplesmente ignoro essas coisas pensando em 11 dimensões."

    Stephen Hawking nasceu no dia 8 de janeiro de 1942, exatos 300 anos depois da morte de seu herói, Galileu Galilei. Era uma criança normal, exceto pelo fato de canibalizar aparelhos de rádio e TV tentando construir um computador, coisa que nem existia na época. Tinha uma caligrafia medonha e gaguejava como o pai, um pesquisador médico tido na família como excêntrico e mal-humorado. Em Oxford, Hawking logo percebeu que era intelectualmente superior a seus professores e desinteressou-se da vida. Formou-se em Física, depois que descobriram sua incrível capacidade para solucionar problemas. Há quem diga que, não fosse pela sua doença, Hawking não teria concentrado sua mente e feito a contribuição cinetífica pela qual é hoje famoso. Ela o forçou a resolver problemas, não na lousa, mas geometrica e pictoricamente em sua mente, em 11 dimensões.

    Heróico e romântico - Ele é uma contradição, uma mente que devassa o universo presa a um corpo inútil. Como a cegueira de Milton ou a surdez de Beethoven, parece ao mesmo tempo heróico, trágico e romântico. Mas ele descarta a descrição. "Nunca me senti como uma alma perfeita vivendo num corpo imperfeito. Embora me orgulhe de minha inteligência, tenho de aceitar minha incapacidade física como parte de mim."

    Sua alma é romântica. Ele adora Wagner e se refere a seu desejo de descobrir, por meio da física e da cosmologia, a mente de Deus. Seus amigos dizem que ele às vezes sente uma solidão esmagadora, embora raramente esteja só.

    Pergunto se tem sonhos recorrentes. ""Acho que sonho bastante, mas geralmente não me lembro do que sonhei. Lembro-me de sonhar que estava num balão de ar quente; o balão para mim é um símbolo da esperança. A primeira vez que tive esse sonho estava mal, tinha contraído pneumonia e tinha feito a traqueotomia que me fez perder a voz, em 1985." Na época, Hawking estava tão mal, que os médicos pediram a sua mulher, Elaine, permissão para desligar os equipamentos que o mantinham vivo, mas ela recusou.

    Ele imaginava que irira ver o novo milênio. "Não, não esperava, mas já que esto por aqui ficaria desapontado se não vivesse para ver um quadro em que tudo se encaixa", diz referindo-se à física. Ele já foi descrito como gênio inigualável, manipulador engenhoso e prima dona. Mas quais seriam as três palavras que usaria para descrever a si mesmo? Há uma longa pausa antes da resposta. "Determinado, otimista e... não consigo pensar numa terceira, mas minha mulher diria teimoso e que vive longe da realidade." (Tradução de Ruth Helena Bellinghini)