Odisséia viking

Menos brutais do que se diz, os navegantes nórdicos colonizaram a América há mil anos.

Daniel Hessel Teich

Bárbaros sanguinários, saqueadores impiedosos e pagãos, os vikings pilharam com tal ferocidade a Europa medieval que ainda hoje ocupam lugar destacado entre os vilões da História. Avós dos civilizadíssimos escandinavos atuais, eles realmente fizeram por merecer a fama de brutos cruéis. Contudo, essa é só uma faceta da onda nórdica que varreu os mares há mais de dez séculos. Eles atacavam mosteiros, queimavam cidades, escravizavam e faziam sacrifícios humanos. Mas também possuíam apurado senso estético e viviam num peculiar regime democrático regido por assembléias populares, enquanto todo o resto do continente estava atolado no feudalismo. Foram comerciantes, ourives, agricultores e navegantes ousados que exploraram cada canto do Atlântico Norte, chegaram a Bagdá, criaram um reino na Ucrânia e estabeleceram uma colônia na América, 500 anos antes de Cristóvão Colombo.

As linhas principais dos feitos e da cultura viking só eram bem conhecidas pelos especialistas. Com a inauguração de uma megaexposição (programada para coincidir com os 1.000 anos da chegada dos vikings à América) no Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsonian, em Washington, na semana passada, ganha visibilidade uma idéia menos estereotipada dessa gente com chifres nos capacetes. Essa é, por sinal, a primeira imagem a ser esquecida. Os elmos chifrudos nunca foram usados pelos guerreiros do norte, mas inventados pelos cenógrafos das óperas do século XIX. A impetuosa expansão nórdica, chamada de Era Viking, durou por volta de três séculos, a partir do saque do mosteiro de Lindisfarne, na Inglaterra, em 793. Com seus barcos rápidos, os guerreiros nórdicos pilharam sistematicamente as ilhas britânicas e a costa atlântica da Europa. Uma esquadra de 700 barcos e 30.000 homens avançou pelo Rio Sena e cercou Paris, no século IX. Reinos vikings foram criados na Escócia, na Inglaterra e na França. Ironicamente, foi a conquista da Inglaterra por seus descendentes franceses, os normandos, no século XI, que pôs fim às incursões guerreiras.

A Era viking não se resume aos assaltos de machado na mão. Eles formaram uma das mais extensas redes de comércio da época e se converteram ao cristianismo. O grande trunfo recebia o nome de knorr, um barco raso com cerca de 20 metros de comprimento por 5 de largura. Eram embarcações movidas a vela e remos, de pequeno calado, capazes de enfrentar tanto os oceanos como navegar por águas rasas. Carregavam a soldadesca, vacas, marfim de leão-marinho, seda, jóias, cabras e tudo mais que valesse a pena comercializar ou roubar. Com esse prodígio náutico, os vikings costearam toda a Europa, desceram os rios Dnieper e Volga e chegaram aos mares Mediterrâneo, Negro e Cáspio. Os barcos eram tão importantes na cultura nórdica que serviam de urna funerária para os grandes chefes. Graças a esse costume, que ajudou a preservar várias embarcações enterradas no solo fofo da Escandinávia, hoje se conhece bastante bem as técnicas de construção desses barcos.

A passagem pela América, identificada como uma terra chamada Vinland, foi durante muito tempo considerada um capítulo fantasioso na atribulada narrativa da colonização da Islândia e Groenlândia. A saga conta que Erik, o Vermelho, banido temporariamente da Islândia como punição por um assassinato, encontrou a Groenlândia e lá estabeleceu uma colônia em 985. Dali enviou seu filho Leif Eriksson para criar uma base em Vinland, do outro lado do mar. Só nos anos 60 pesquisadores encontraram provas arqueológicas de que europeus realmente estiveram há 1.000 anos no que hoje é o Canadá. Os vestígios de oito casas, construídas de forma idêntica a outros abrigos islandeses da mesma época, estão na região de Terra Nova. A principal base marítima ficava perto da atual cidade de L'Anse aux Meadows. Existem evidências de que os escandinavos mantiveram contato comercial com os esquimós e com os índios canadenses (descritos na saga como feios e bárbaros). A colônia sobreviveu por apenas dez anos. "Era muito difícil uma pequena comunidade de apenas 500 pessoas, que mal conseguia sustentar-se, pensar em colonizar uma área tão vasta", avaliou o curador da exposição americana, William Fitzhugh, em entrevista à revista Time. "Os vikings haviam acabado de chegar à Groenlândia quando decidiram partir em direção à América. Não era nada prático manter duas colônias."

As viagens também só tinham sido possíveis porque se vivia um período de temperaturas amenas. Uma mudança brusca do tempo, em 1350, conhecida como Pequena Era Glacial, pôs fim às colônias na Groenlândia e reduziu a população da Islândia a uns poucos milhares. A exposição que reconta a história dos nórdicos custou 3 milhões de dólares e reúne 200 peças arqueológicas da Escandinávia e de escavações em todos os lugares por onde andaram os vikings. As peças, dispersas em vários museus europeus, canadenses e americanos, nunca haviam sido exibidas juntas antes. Os organizadores ainda tomaram o cuidado de montar uma sala apenas com objetos e obras de caráter popular produzidos a partir do século XIX, que contribuíam para os equívocos em torno dos vikings. Muito do que se imagina sobre esse povo foi forjado a partir de poemas, romances e quadros produzidos sem nenhum compromisso com o que de fato aconteceu na Idade Média. Vem daí a idéia operística do capacete com chifres ou com asas. É uma ótima oportunidade para descobrir que os vikings de verdade não têm tanto em comum com o Hagar, o Horrível, personagem de história em quadrinhos, exceto a inegável mania de saquear a Inglaterra.