Borboletas usam veneno como alimento

Habilidades de sobrevivência da espécie intrigam os especialistas

NICHOLAS WADE - The New York Times

NOVA YORK - A "folha corrida" criminal é chocante. Envenenamento com cianeto. Canibalismo. Assédio de menores. Mas há circunstâncias atenuantes.

O delinqüente tem um cérebro duas vezes maior que o normal. É notavelmente elegante, leva uma vida inusitadamente ativa. E não faz parte do código moral da nossa sociedade, pois é apenas uma borboleta.

A helicônia vive em florestas tropicais das Américas Central e do Sul, exceto a Heliconius zebra, que tem preferência pela Flórida. Os insetos adultos têm asas arredondadas bem distintas, com listras coloridas. Enquanto a maioria das borboletas voa a plena velocidade para escapar de predadores, as helicônias saltitam de flor em flor, exibindo seus matizes brilhantes, como se não tivessem nenhum inimigo. As adultas preferem flores conhecidas, mas, quando lagartas, alimentam-se das folhas de uma família de trepadeiras, as passifloras, que produzem a flor do maracujá.

Na floresta, as criaturas que ousam exibir-se têm defesas ocultas. A helicônia possui tecidos repletos de cianeto, um veneno universal que interfere com as células da respiração. Curiosamente, as trepadeiras das quais elas se alimentam estão também cheias de substâncias carregadas de cianeto, conhecidas como cianogênios, embora de um tipo diferente dos cianogênios elaborados pelas borboletas. Logo que as bocas começam a mastigar as folhas da trepadeira, as células da borboleta liberam uma enzima que dá origem ao cianeto.

Lawrence F. Gilbert , da Universidade do Texas, estuda helicônias e passifloras desde 1969. Ele e seus colegas Helene S. Engler e Kevin Spencer começaram agora a analisar a interação química entre ambos. Numa edição recente da revista Nature, eles relataram que a espécie Heliconius sara pode converter o principal cianogênio de sua planta-alimento numa fonte de nutrição.

Para os biólogos, a interação entre a trepadeira e a borboleta em milhões de anos pode ter sido uma força motriz na evolução de cada grupo. Há cerca de 600 espécies de passifloráceas e 40 de helicônias nas Américas. Pode ser que as trepadeiras se tenham diversificado antes, protegidas pelo mecanismo de defesa do cianeto contra animais herbívoros. Depois, as borboletas quebraram o código do cianeto e descobriram que tais plantas poderiam alimentá-las.

Embora sua defesa primária tenha sido quebrada pela borboleta, as passifloráceas resistiram de outros modos. Gilbert descobriu que as folhas da passifora têm formas muito variáveis, como que para se disfarçarem das helicônias caçadoras. Mais notavelmente, algumas espécies de passiflora desenvolveram um sistema de defesa de pseudo-ovos. Se as borboletas fêmeas virem essa coisa parecida com um ovo num ramo novo, evitarão esse broto e irão depositar seus ovos em outro lugar.

Os ovos falsos - essencialmente, uma pequena saliência amarela numa folha - exploram uma característica obscura da helicônia: suas larvas são canibais.

Como elas comem apenas os brotos jovens da trepadeira, grandes apenas para sustentar uma única lagarta até a maturidade, as primeiras larvas a saírem dos ovos comem todos os outros ovos de seu broto.

Einsteins - As trepadeiras podem ser inteligentes, mas as helicônias, segundo Gilbert, são verdadeiros Einsteins entre os lepidópteros. As borboletas aprenderam a alimentar-se do pólen sugando-o em sua língua e secretando uma enzima que digere os grãos nutritivos. Isso significa que elas podem viver vários meses e transferem grande parte do esforço de alimentação do estágio de lagarta para a fase adulta. Se acharem pólen suficiente, as borboletas fêmeas continuarão pondo ovos até sua pele e asas se desgastarem. Essa rotina não é para as helicônias. Elas marcam seus territórios e os controlam todos os dias. As fêmeas procuram brotos novos produzidos pelas passifloráceas. Ambos os sexos buscam as flores efêmeras de outra trepadeira, o pepineiro-da-floresta, que fornece o pólen.

Ansiosos por uma parceira, os machos localizam as crisálidas fêmeas e pousam sobre elas, às vezes quatro sobre uma única pupa, até surgir a fêmea, obrigada no início da vida adulta a copular enquanto tenta soltar suas asas.

Há muito tempo, as borboletas aprenderam a converter os aminoácidos do pólen em cianogênio. Depois, tornaram seus próprios tecidos tóxicos e desenvolveram um tipo de mimetismo no qual espécies venenosas se parecem umas com as outras. Enquanto evoluíam nessa arte, as helicônias também entraram numa furiosa corrida armamentista evolutiva com as passifloras. As trepadeiras desenvolveram um tipo distinto de "poção de bruxa", ou seja, um cianogênio diferente para repelir as borboletas, e cada nova substância pode ter exigido que as helicônias desenvolvessem outro estratagema para enfrentá-la. Essa implacável guerra química pode ter sido um fator na atual profusão de espécies de cada lado.