A natureza contra-ataca

O planeta começa a responder com derretimento de geleiras, secas, escassez
de água e aquecimento global aos milhares de anos de agressões feitas pelo homem

Bia Barbosa

No cálculo que se tornou clássico na literatura científica popular, o astrônomo Carl Sagan (1934-1996) propôs que se toda a história do universo pudesse ser comprimida em um único ano, os seres humanos teriam surgido na Terra há apenas sete minutos. Nesse período, o homem inventou o automóvel e o avião, viajou à Lua e voltou, criou a escrita, a música e a internet, venceu doenças, triplicou sua própria expectativa de vida. Mas foram também sete minutos em que a espécie humana agrediu a natureza mais que todos os outros seres vivos do planeta em todos os tempos. A natureza está agora cobrando a conta pelos excessos cometidos na atividade industrial, na ocupação humana dos últimos redutos selvagens e na interferência do homem na reprodução e no crescimento dos animais que domesticou.

A começar por seus bens mais preciosos, a água e o ar, o balanço da atividade humana mostra uma tendência suicida. Com a mesma insolência de quem joga uma casca de banana ou uma lata de refrigerante pela janela do carro pensando que se está livrando da sujeira, a humanidade despeja na natureza todos os anos 30 bilhões de toneladas de lixo. Quem mais sofre com a poluição são os recursos hídricos. Embora dois terços do planeta sejam água, apenas uma fração dela se mantém potável. Como resultado, a falta aguda de água já atinge 1,2 bilhão de pessoas em todo o mundo. Quatro em cada dez seres humanos já são obrigados a racionar o líquido. Pior. Por problemas principalmente de poluição, os mananciais, que ficaram estáveis por séculos, hoje estão diminuindo de volume em todos os continentes, enquanto a população aumenta. Se a Terra fosse do tamanho de uma bola de futebol, a atmosfera teria a espessura do fio de uma lâmina de barbear. Pois bem, essa estrutura delicada vem recebendo cargas de fumaça e gases venenosos num ritmo alucinante. Segundo avaliação do Worldwatch Institute, em um único dia a humanidade e suas máquinas jogam na atmosfera mais gás carbônico que todos os seus antepassados em um século. Análises de amostras coletadas de ar encapsulado no gelo do Ártico, datadas conforme sua profundidade, confirmam essa avaliação. Centenas de espécies de peixes comestíveis foram extintas em apenas trinta anos pela pesca industrial, que usa satélites para localizar cardumes e redes tão descomunais que poderiam engolfar um prédio de quarenta andares. Pela presença de pessoas em seus habitats, animais estão sendo extintos num ritmo cinqüenta vezes mais rápido que o trabalho seletivo da evolução natural das espécies. Apenas um terço das florestas que viram a chegada dos colonizadores europeus às Américas ainda está de pé. O Brasil é quase uma vitrine da destruição tocada pelo homem. O país já perdeu 93% da Mata Atlântica, 50% do cerrado e 15% da Floresta Amazônica. E as motosserras continuam em ação.

Individualmente, as agressões acima seriam absorvidas pelo ecossistema global, acostumado a catástrofes naturais. O problema é que houve uma orquestração. Sem se dar conta, os 6 bilhões de pessoas tornaram-se um fardo pesado demais para o planeta, tanto sobre o solo quanto no mar e no ar. Agora, a natureza está mandando a conta. O efeito mais apocalíptico dessa mensagem é o aquecimento global, cuja causa mais provável é a concentração na atmosfera de gases produzidos pela queima de gasolina, óleo e outros combustíveis por fábricas e veículos. O acúmulo desses gases poluentes encapsula o calor do sol e não deixa que ele escape para o espaço sideral, transformando a atmosfera numa estufa. "Durante anos, parte da comunidade científica se enganou atribuindo o aquecimento aos ciclos naturais do planeta e às mudanças na atividade solar. Hoje existe uma quase unanimidade de que o problema é causado por nós mesmos", diz ninguém menos que Stephen Hawking, o reputado astrofísico inglês. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, das Nações Unidas, foi incisivo nesse aspecto. "Já estamos e vamos continuar pagando o preço do que fazemos hoje com o planeta. Isso não é especulação. É uma constatação científica", afirma Thelma Krug, coordenadora-geral de Observação da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Somente no ano passado, cerca de 29 bilhões de toneladas de dióxido de carbono foram liberados na atmosfera.

Segundo especialistas, se o efeito estufa continuar a crescer no mesmo ritmo, a temperatura média da Terra pode aumentar 5,8 graus centígrados até 2100. Essa temperatura é 65% maior que o pior cenário de aquecimento global traçado há cinco anos por um grupo de cientistas. Na época, a previsão foi tachada de pessimista. Ninguém se iluda com a idéia de que a longo prazo todos estaremos mortos e, portanto, que a Terra esteja um pouco mais quente daqui a 100 anos é um problema para os netos de nossos bisnetos. Nada disso. Os primeiros sinais já estão por toda parte. São visíveis os recuos das geleiras em ambos os pólos. O Ártico perdeu 6% de sua área entre 1978 e 1996, um ritmo quatro vezes maior que o registrado por observadores do século passado. Os verões estão mais longos e os invernos mais curtos, atrapalhando o metabolismo dos pinguins, no sul, e dos ursos polares, no norte. Atribuem-se às mudanças climáticas provocadas pelo homem as inundações violentas que arrastaram bairros inteiros na Itália nos últimos anos. O efeito em cascata pode ser sentido a milhares de quilômetros de distância dos pólos. Em 1999, duas ilhas do Pacífico Sul desapareceram sob as ondas com o aumento do nível do mar causado pelo derretimento de geleiras.

No pior cenário, em algumas décadas o nível dos oceanos pode subir 80 centímetros. É uma catástrofe. Ilhas, deltas de rios, cidades costeiras acabariam debaixo das águas. Países baixos como a Holanda teriam suas fontes de água doce comprometidas pela salinização e a vida ficaria muito mais difícil. Cerca de 90 milhões de pessoas seriam afetadas diretamente pelo aquecimento global. Dezenas de milhões de outras sofreriam os efeitos indiretos do fenômeno. Com o calor, viriam as secas prolongadas e agudas. Em 25 anos, 5,4 bilhões de pessoas, ou 90% da população atual do planeta, teriam de racionar água. Como escapar da catástrofe anunciada ? Para alguns cientistas, a maioria, % ainda existe tempo de reverter ou anular parte dos efeitos simplesmente reduzindo drasticamente as descargas de poluentes na atmosfera. A situação fica preocupante quando se sabe que houve um retrocesso nos Estados Unidos, o maior emissor, com 26% de todas as descargas de gases que aumentam a absorção de calor pela atmosfera. O presidente George W. Bush pretende ignorar solenemente os acordos internacionais de controle do efeito estufa. "Mesmo se mantivermos as emissões de CO2 no nível em que estão hoje, a trajetória do planeta a longo prazo é extremamente preocupante", avalia Luiz Gylvan Meira Filho, presidente da Agência Espacial Brasileira, autoridade que fala internacionalmente em nome do governo brasileiro quando o assunto é aquecimento global. Fica cada vez mais claro que a humanidade precisa tratar com mais carinho sua hospedeira, a Terra. Biólogos como o inglês James Lovelock acreditam que os contra-ataques da natureza são resultado de ajustes naturais que os ecossistemas do planeta estão fazendo para manter a saúde da Terra. Essa é a chamada Hipótese Gaia. Segundo ela, a Terra é um organismo dotado da capacidade de manter-se saudável e que tem compromisso com todas as formas de vida – e não com apenas uma delas, o homem.