Quando os mestres erram

Marcelo Gleiser

Hoje gostaria de contar uma história que exemplifica como a idéia de autoridade intelectual opera na comunidade científica, muitas vezes com efeitos negativos. Isso porque a imagem do grande mestre projeta uma aura de infalibilidade que é falsa: grandes mentes também erram.
    Durante os anos 20 e 30, a comunidade astronômica britânica era dominada pela figura de Arthur Eddington. Foi ele quem provou, por meio de observações de um eclipse do Sol em 1919, que a teoria da relatividade geral de Einstein estava correta. Foi ele quem desvendou, em grande parte, a composição química do Sol e como as estrelas operam, contrabalançando a tendência de implodir pela gravidade e a pressão criada pelas altas temperaturas no centro. Quando Eddington falava, os astrônomos ouviam.
    Na Índia, em 1930, um estudante de 19 anos, Subrahmanyan Chandrasekhar, estava fascinado com os novos desenvolvimentos da física, a relatividade geral e a mecânica quântica. Ele decidiu fazer seu doutorado em Cambridge, Inglaterra, onde lecionavam seus ídolos, Eddington e R. Fowler, que em 1926 havia proposto uma resolução radical para um paradoxo levantado por Eddington: o que acontece com uma estrela quando ela esgota seu combustível interno e esfria?
    A teoria dizia que ela passaria por uma sucessão de estados de equilíbrio, encolhendo, esquentando e se reequilibrando até esfriar novamente, encolher, esquentar etc. "Alto lá!", exclamou Eddington. "Se isso for verdade, a estrela irá então encolher até desaparecer? Certamente deve haver uma lei da natureza que impeça esse absurdo."
    A "lei" foi proposta por Fowler, com base na mecânica quântica. Ele mostrou que, quando a estrela encolhe e sua densidade passa de um determinado valor, os elétrons no centro da estrela vão ser espremidos tão perto uns dos outros que uma nova pressão passa a operar. Podemos visualizar o que ocorre imaginando que cada elétron está confinado a uma pequena célula que, com o aumento da compressão, tende a diminuir. Os elétrons reagem movendo-se a altíssimas velocidades dentro de suas células, gerando pressão que as mantêm firmes, interrompendo o processo de contração.

Eddington gostou da explicação, que salvava estrelas ultracompactas chamadas "anãs brancas" da completa implosão. Entra em cena Chandrasekhar que, ainda no navio para a Inglaterra, resolve estudar se os elétrons conseguem balancear contrações arbitrariamente altas. Afinal, é razoável supor que estrelas com massas bem maiores que a do Sol causem pressões mais altas no centro. Usando métodos aproximados, ele obteve resultado surpreendente: se a massa da anã branca for 1,4 vezes maior que a massa solar, os elétrons são incapazes de contrabalançar o colapso. Chandrasekhar chega a Cambridge e conta a Fowler seu resultado. Infelizmente, a recepção de Fowler e da comunidade astronômica foi fria.
    Chateado, Chandrasekhar resolve estudar assuntos menos controversos para seu doutorado. Diploma na mão, ele decide apresentar seus resultados sobre a massa "crítica" das anãs brancas na Sociedade Real de Astronomia. Para sua surpresa, na mesma noite o venerado Eddington também iria falar. Chandrasekhar apresenta os resultados de forma clara e brilhante. Eddington responde criticando severamente as idéias de Chandrasekhar e apresentando sua própria versão do que acontece com as anãs brancas, que, sabemos hoje, estava errada. Mas quem iria contrariar o grande Eddington? Ele não podia aceitar uma estrela implodindo indefinidamente.
    O golpe em Chandrasekhar foi tão duro que, por quase 20 anos, ele não trabalhou no assunto. Mas ele estava certo e Eddington, errado. Em 1982, Chandrasekhar ganhou o Prêmio Nobel, por essa e muitas outras contribuições à astrofísica.
    Para nós, fica a lição de que, em ciência, autoridade pode cegar a visão de muitos durante um bom tempo. Mas, cedo ou tarde, se Davi tiver melhores idéias do que Golias, ele vai vencer a batalha.