A Formação dos primeiros grupos humanos
    José Tadeu Cordeiro

 

 

Podemos imaginar a comunidade humana como oriunda de uma horda de animais. Em uma manada de animais já existe uma hierarquia social declarada. A força física ou psíquica e a atividade determinam rigorosamente quem deve morder e oprimir os outros, quem deve liderar o conjunto do rebanho.


    Da mesma forma, cada um isoladamente, inclusive os animais mais fracos ou os jovens, encontram proteção no interior do rebanho. A psicologia tem demonstrado que a hierarquia social, inclusive a da família não é um fenômeno especificamente humano, encontra-se também entre os outros animais.


    No que consiste a diferença entre a formação das comunidades humanas em relação aos animais?


    É possível que os homens vivessem em pequenos bandos, sua economia baseava-se na coleta de frutos e raízes e na caça. Refugiavam-se das intempéries nas cavernas naturais e retiravam-se conforme as variações climáticas à cata de suas presas. Mais tudo isto não ultrapassa muito as possibilidades de um bando de animais, exceto pelo uso de instrumentos e pela descoberta e uso do fogo.


    Diferentemente dos animais, deparamos, bruscamente, com esses notáveis desenhos e gravuras de animais que eram caçados, desenhos e gravuras que se conservaram até nossos dias, em cavernas fechadas. Lá está o testemunho decisivo de uma existência humana conforme as concepções que dela temos.


    Os autores desses desenhos eram os chefes desses grupos. Não encontramos essas gravuras nas cavernas dedicadas à moradia, mas somente naquelas cavernas dedicadas ao culto. Uma série de indícios indica que elas serviam à magia da caça, à defesa e ao domínio dos animais perigosos.


    As imagens traduziam a intenção da comunidade, o medo, o pavor que o homem tinha diante do animal era vencido pela contemplação cultural da imagem, quando ele conseguia representar a criatura temida em uma cópia inofensiva que ousava encarar de frente.


    O importante é que essa ação ritual seja um dado da consciência. O curandeiro não é apenas o pintor dessas figuras, mais ao preceder aos outros no domínio do perigo e do medo, leva o grupo a se sentir uma comunidade.


    Estas relações tornam-se mais complexas durante a evolução da humanidade. A situação típica na qual a comunidade humana, pela participação consciente de parte de seus membros numa tarefa se realiza diante de um símbolo de sua criação, será em toda parte semelhante, ainda que freqüentemente nem tão plástica nem tão simples.


    Assim o fato de dedicarem-se a fabricação de utensílios ou substituir a pró-criação natural por prescrições como o casamento (que impedia o incesto) marca o aparecimento de instituições autônomas que, como cerimônias rituais conscientes que substituem a organização instintiva do homem. A antropofagia é substituída e reprimida e, sobretudo, a objetivação do mundo através da linguagem, ilustram de forma rica os primórdios do universo cultural do homem.


    Desde o primeiro instrumento criado pelo homem de Neanderthal a técnica não parou de desenvolver-se. Os problemas da formação dos grupos humanos ajustam-se a evolução da técnica à medida que se transformam as tarefas que tem que ser resolvidas.


    O domínio da agricultura e da pecuária (10.000 a.C.) transforma radicalmente a vida do homem, que logo se torna sedentário. Assim o sedentarismo, agricultura e pecuária são promessas econômicas das “grandes civilizações Orientais”.

 

 


    Foi partindo das comunidades camponesas que as “grandes civilizações” se desenvolveram. Encontramos grandes vales fluviais cercados de desertos ou de florestas virgens que só poderiam tornar-se habitáveis se os cursos d’água fossem regularizados, organizados, com fim de irrigar e fertilizar os campos, de modo que as enchentes e longas secas não inundem ou sequem, as áreas aráveis. A regularização deve ser objeto de uma região toda, de um acordo coletivo. Na raiz da palavra chinesa “governar” subsiste a etimologia regularização dos rios. A situação geopolítica do Egito, ainda hoje, lembra o 5ooo Ac que exigiu a formação de grandes aglomerados e de projetos coletivos em grande escala.


    O império egípcio formou-se pela reunião coercitiva do Baixo e Alto Egito e de uma série de distritos no interior dessas regiões, autônomos ainda por algum tempo e a tarefa dominante era o controle das cheias regulares do Nilo e a irrigação das terras. Devido ao trabalho comum para a regularização do rio, organizado e dirigido pelo “Estado”, a gleba de cada família, de cada aldeia era irrigada e fertilizada pelo humos do Nilo, de tal forma que o trabalho individual em cada gleba podia cobrir-se de êxito. Os trabalhos coletivos não são nem fantasia nem uma coerção brutal, é uma resposta criativa do homem as exigências que a natureza lhe impôs.O Estado (faraó) tem como missão principal à regularização do Rio Nilo, mas tem outras missões: segurança (interna/externa), o instituto do direito, o desenvolvimento do artesanato, do comércio, a construção de cidades e a distribuição do produto social.


    O essencial é que, já nas premissas econômicas, o individuo, a família e até pequenos grupos não podem viver se os problemas gerais, em cujo quadro a vida decorre, não são solucionados. Ainda que a supremacia do Império sobre o individuo surja pela violência, conquista e sujeição, sua permanência é motivada de forma racional, não senão ao preço dessas exigências que a vida pode continuar. Em conseqüência a dominação não é mais só opressão e exploração do homem, mais responsabilidade em face do povo dominado. Os abusos posteriores, com opressão e exploração devem-se a independência dos dominadores em relação aos dominados.


    É por meio da linguagem que a comunidade se projeta, no lugar das pinturas rupestres existe agora um mito, a própria comunidade, representada como sendo denominada pelos deuses, porque a idéia de um acordo acerca de certas tarefas é inexplicável. O Faraó é o filho dos deuses, sua divindade é a própria força vital inexaurível, superior a tudo. É dessa força criadora (Ka) que reside à felicidade e a prosperidade da comunidade, cada um recebe do rei à parte da força divina (Ka) de que precisa.


    Na veneração do Faraó, nas cerimônias de ascensão ao trono, na conservação de seu cadáver e seu sepultamento em monumentais pirâmides, em cujas construções o povo trabalhava gratuitamente dezena de anos, não era o homem que fora soberano que se venerava, mas a própria comunidade nele representada, assim o povo visava sua própria individualidade divina.


    No culto, cada individuo participava conscientemente da comunidade, no faraó a parte divina, imortal, de cada individuo transitório da sociedade era objetivamente real e presente na terra.


    O mito não se limita aos homens, o país que o povo habita é uma região de cultivo, ele colocou a grande tarefa pela qual a comunidade se formou e se renova incessantemente. As grandes construções, pirâmides e templos, as estradas, cidades e os canais de irrigação marcam a paisagem. Esta marca deixada no país pelas construções é antes de tudo uma santificação do terreno conquistado que é incluído no mito.

 


    No Egito que se achava protegido pelo deserto, a atividade guerreira é menos importante que a que se desenvolve no Oriente Próximo, como na Assíria onde a característica guerreira degenera-se num despotismo arbitrário, com o imperador construindo um aparelho de Estado que se opõe ao povo em forma de tirania imobilizando a cultura, que entra em regressão em proveito apenas das técnicas militares.


    José Tadeu Cordeiro baseou-se em Kurt Shilling, História das Idéias Sociais.


 

Interpretando o texto

1ª. Qual a comparação entre as sociedades humanas e os animais no início de nossa existência (em que sentido nos aproximamos e nos afastamos dos animais)?


2ª. Como o autor aproxima as pinturas rupestres de uma concepção religiosa do homem?


3ª. Qual o papel da técnica e da linguagem na evolução do homem?


4ª. Qual a base do desenvolvimento das grandes civilizações? Qual o papel das grandes obras nesse desenvolvimento?


5ª. Qual a concepção de comunidade na visão do autor? Como essa comunidade se faz presente no Faraó?