A invenção de Razão.
    José Tadeu Cordeiro

 

 

Estamos no século V antes da era Cristã. A Grécia está dividida em múltiplas cidades, algumas muito pequenas, outras maiores. A mais extensa é Esparta. Essas cidades têm em comum os deuses , uma cultura e a língua. Guerreiam entre si apesar da ameaça de uma invasão bárbara que pesa constantemente contra elas.


    Essas cidades criaram colônias que logo conquistaram a independência e fazem agora circular um espírito novo. É preciso construir cidades, criar instituições e, o pensamento tradicional está sendo submetido á duras provas. A tradição não basta a essas cidades. Este espírito novo remonta até o centro, e já no século VI, todas essas cidades são varridas por um vento de renovação.


    Isso vale principalmente para Atenas, onde alguns homens vão inventar o que será chamado de “democracia”. Na época a democracia se define essencialmente pela igualdade. Todos os cidadãos, quaisquer que sejam, quaisquer que sejam sua fortuna são iguais perante a lei. Tem o mesmo direito de intervir diante dos tribunais e de tomar a palavra nas Assembléias em que se decide o destino coletivo.


    Na verdade, na democracia a palavra torna-se rainha. Nestas cidades tradicionais a educação era moral e militar. Dava-se pouco valor a palavra. Falava-se pouco e, quando se falava, recitavam-se os velhos poemas tradicionais, que glorificavam as origens das cidades.


    No século V aC, Atenas assumiu uma importância considerável. Os bárbaros vindo da Pérsia invadem-na por duas vezes, em 490 e 480 aC e, nestas vezes foi a jovem cidade de Atenas que travou o combate decisivo contra os invasores. Após a vitória na batalha de Salamina, Atenas se tornou um poder importante, para o qual todos os olhares então se dirigiam. A democracia ateniense, a partir daí, aparece como modelo.


    Pode-se dizer que, partindo de Atenas, o gosto pela palavra conquista a Grécia inteira. Ao mesmo tempo em que nascem novas técnicas e artes. A palavra tekhnê representa, simultaneamente, a idéia de técnica de um saber aplicado e a idéia de arte, de invenção, de produção original. Esse desenvolvimento do uso da palavra levou ao nascimento da retórica.


    Para ocupar um lugar numa cidade assim é preciso falar, saber, convencer. A democracia ateniense tem necessidade de “professores”, de pessoas capazes de ensinar a falar bem, a manejar habilmente os argumentos de modo a convencer os tribunais ou nas assembléias públicas. Saber convencer de que essa posição é melhor do que aquela é de importância capital. Platão nos fala destes “professores” da democracia. Ele os chama de sofistas, termo que se tornou “suspeito”, devido a Platão.


    Etimologicamente sofista quer dizer apenas “intelectual que sabe falar”, que domina a linguagem. São pessoas que vem do Sul (da Grécia) que se instalam em Atenas, abrem escolas de “retórica”, que são ao mesmo tempo “escolas de política”. Assim, após a vitória contra os persas, Atenas torna-se poderosa, forma um império e reforça seu regime democrático.


    Falamos do século de Péricles, esse século que durou 30 anos. Mas é certo qualificá-lo de século, já que tantas coisas aconteceram em apenas 30 anos. Na Atenas de Péricles produziu-se uma verdadeira aceleração histórica. Na verdade, duas frentes se confrontam: os sofistas e a velha e tradicional aristocracia. Uma parte da aristocracia, que ama a cidade, pensa que Atenas estava tomando um caminho perigoso. Na opinião deles, Atenas está promovendo uma orgia de gastos e, assumindo um imperialismo, às vezes cruel. Prática com desfaçatez o comércio e a busca do lucro.


    A tradição encontra eco nos grandes poetas trágicos. Ésquilo, embora modernizando a tradição, conserva a chama da velha concepção de mundo em que os deuses são onipresentes e é preciso tomar cuidado para não chocá-los. Contra essa tradição que se desenvolve o pensamento sofístico. Entre essas duas forças que combatem entre si – uma tradição envelhecida e gloriosa que não responde mais as evidências da realidade e da sociedade e o novo pensamento sofista, talvez subserviente demais a essa exigências – surge um estranho personagem: Sócrates.


    Mas Sócrates, a seu modo é um sofista. Só que ao contrário destes não abre uma escola nem pede dinheiro aos seus interlocutores. Ele fala porque tem prazer nisso e lamenta ver seus concidadãos se entregarem à imoralidade e ao gosto pelo luxo. Sócrates anda pela cidade, cumpre seu ofício como cidadão. Combate, quando tem que combater, trabalha, quando tem que trabalhar, mas não tem uma profissão. Precisa de pouca coisa para viver. Faz uma crítica violenta a tradição e, também, aos sofistas. Mostra a todos que ocupam posições que, embora pensem que sabem tudo, na verdade, não sabem nada.

 


    Sua intenção, segundo Platão. É salvar a cidade, mas é mal interpretado, levado diante dos tribunais sob a acusação de corromper a juventude, é condenado à morte. De seus ensinamentos e de sua morte é que nascerá a filosofia.


    Platão tornou-se o administrador da filosofia socrática, para que a cidade se transformasse e homens como Sócrates pudessem viver. A obra de Platão é toda contra os sofistas e, só moderadamente, ataca à tradição.


    Entretanto, o pensamento platônico parte do mesmo ponto que os sofistas: a palavra. Para lutar contra a palavra mentirosa, só dispomos da palavra, a menos que nos entreguemos à violência e, isso ele recusa.Platão fundou a Academia em 384 aC e, nessa escola, além de matemática e da dialética procede à refutação aos professores da democracia. Mostra que não há nenhuma razão para que a maioria tenha razão. O número de votos não faz a verdade. E, Platão se propõe, usando apenas da palavra, construir um discurso que seja juiz de todas as palavras (o conceito).


    Ele retoma o procedimento socrático. Seus diálogos partem de perguntas simples: Fulano agiu com justiça em tal circunstância? E a partir daí pergunta: o que é justiça? A filosofia parte de perguntas simples, o que os filósofos chamam de questões empíricas. A partir daí ela tenta construir uma argumentação no plano do conceito – da idéia clara e distinta, como dirá Descartes.


    Tendo feito a pergunta, Platão mostra a idéia central a qual ele se refere. Depois, através de um jogo de perguntas e respostas, monta um dispositivo que, a cada etapa do desenvolvimento, exige concordância dos interessados. É por isso que o diálogo é a forma da filosofia nascente. A arte do diálogo se chamará dialética. O filósofo oporá sua dialética à retórica dos sofistas. Aristóteles refina essa oposição, distinguindo a persuasão – segundo ele, a arte do advogado de defender seu cliente, pouco preocupado com a verdade – da convicção, que cria verdades duradouras para o interlocutor.


    O filósofo platônico constata que, na Assembléia do Povo, que toma as decisões para Atenas, cada um vê as coisas através do próprio prisma. Cada um constrói a realidade em função de suas paixões, de seus desejos, de seus interesses e a decisão que disso resulta não é necessariamente verdadeira. Ora essa maioria ganha, ora ganha outra maioria. Não seria melhor levar em conta a opinião de todos o tempo todo.


    O trabalho do filósofo, parte daquilo que cada um considera seguro, desses pretensos fatos para a prova dos sentidos. Trata-se de submeter, a todo o momento, os fatos aos conceitos que foram estabelecidos.


    Ao examinarmos a estrutura dos diálogos platônicos, temos a impressão de que Platão deixa falar um dos interlocutores que, bruscamente, começa a contestar a posição do mestre. Progressivamente, sentimos que o discurso se constrói, que o assunto se esgota e o diálogo se acaba quando todos os interlocutores estão de acordo que se conseguiu responder a pergunta feita no início. O diálogo termina quando se sente que não se saberá nada a mais.


    O homem é um ser que vive em comunidade, nesta deve-se tentar construir, levando-se em conta as forças e as fraquezas humanas, um discurso tão bem argumentado que, no fim, cada um dos participantes fica obrigado a concordar, a aceitar esse discurso.


    Aristóteles, chamará esse discurso de Sophia, e aquele que o faz, que tende amorosamente a construção dessa Sophia, de philósofos. Na Sophia há duas dimensões: a primeira teórica, corresponde ao discurso que provoca o assentimento de todos aqueles que o ouvem; a segunda dimensão é de ordem prática, que exige que nos comportemos de acordo com o discurso. A filosofia (sabedoria) é tanto uma maneira de pensar como uma maneira de se comportar.


    Aliás, a tarefa do pensamento de Platão é formar homens de poder, homens preparados para obter o assentimento, que devem construir uma política que receberá a concordância de todos e fará cessar a guerra civil. É um projeto considerável.


    A submissão do fato à prova da significação supõe a construção do conceito. Este (conceito) nada mais é do que a estrutura mental que acompanha o desenvolvimento do discurso. Chatelet chama atenção para a 3ª parte do Górgias, onde há uma discussão entre Sócrates e Cálicles sobre o significado da justiça e o uso da retórica. Cálicles responde com veemência, quase com grosseria a argumentação socrática. Depois, em certo ponto do diálogo, Cálicles se torna amável, limitando-se a responder: “claro, estou de acordo com você. Naturalmente Sócrates...”. Ao fim de certo tempo,Sócrates percebe a mudança e quer saber a razão de “tanta cortesia”. Recebe esta resposta terrível: “Se estou sendo amável com você, é porque não me interesso nada pelo que você diz. Continuei a falar com você por deferência ao velho Górgias(...)”. Essa é a maior objeção que se pode fazer ao filósofo.


    O que fazer com aquele que usa a palavra como um instrumento, que não se preocupa com o significado das palavras, que não se esforça para a construção de um discurso que requeira a adesão dos outros.Esta é a grande questão da filosofia e, Platão levanta esse problema com um vigor espantoso. O filósofo diante dessa objeção trágica, irá além do simples assentimento dos que estão presentes, afirmará que o discurso que faz, por excelência, corresponde ao real.De certa forma, essa filosofia foi incentivada por Sócrates. Acontece que só o conhecemos através dos diálogos de Platão e, de algumas citações de Aristóteles.

 


    Também o conhecemos através de Aristófanes. Em, As Nuvens, o herói que representa Aristófanes, convoca o povo de Atenas a incendiar “O Pensatório” de Sócrates e, acabar com essa raça, com essa corja de bandidos que se chama filósofos.


    Platão constatou que a democracia se engana, que os profissionais competentes também se enganam. Ele toma emprestado á democracia “a maioria” e com ela procura chegar à universalidade. Toma por empréstimo á técnica do diálogo e, reunindo esses dois aspectos, deseja poder instituir uma forma de competência universal, que seria a competência da razão.


    Nesse sentido que o filósofo assume uma responsabilidade enorme quando diz: “Vou construir um discurso universal, capaz de julgar todos os outros discursos e, conseqüentemente, todas as condutas. Vou determinar, através do meu discurso quem é louco, quem é criminoso, etc.”


    É um discurso totalitário? O risco de um discurso totalitário está presente na filosofia. Mas é pouco provável que os filósofos procurem um discurso totalitário. Razão e liberdade caminham juntos num discurso filosófico. Mas um risco dos políticos usarem a filosofia como explicação totalitária para se justificarem.


    José Tadeu Cordeiro baseou-se em François Chatelet, Introdução à Filosofia.


    Interpretando o texto

1ª Qual a importância da “palavra” (diálogo) na democracia?


2ª Qual a importância dos “sofistas” para a educação grega? O que é um sofista?


3ª Explique o que o autor chama de confronto entre a tradição e os sofistas. Quais as posições de Sócrates e de Platão a respeito desses dois “grupos” que se enfrentam?


4ª Como Platão constrói sua “filosofia”? O que é a filosofia? O que é o conceito?


5ª Comente as dimensões: teórica e prática da filosofia, segundo Aristóteles? Isso pode nos levar ao totalitarismo na filosofia e na ação política?