A qualidade da Reforma Agrária
    Xico Graziano

 

 

Durante oito anos, a opinião pública acompanhou o debate entre o MST e o governo FHC sobre a quantidade de assentamentos rurais. A briga foi brava. Para o governo fazia-se muito. E tomem-se os números. Para o MST, a reforma não andava. E dá-lhe invasão de terra, para apressar a reforma. Quem tinha razão?


    Que ninguém duvide: na disputa da quantidade, o governo vence fácil. O Brasil realizou a maior reforma agrária do mundo, nos marcos do regime democrático. Arredondando, foram 20 milhões de hectares distribuídos a 600 mil famílias “sem terra”.A base de comparação pode ser a agricultura paulista: São Paulo mantém 270 mil agricultores, que cultivam 6,2 milhões de hectares. No país, toda a área cultivada com grãos atinge 40 milhões de hectares.


    Qualquer comparação vai comprovar a grandiosidade da reforma agrária de FHC. Na questão agrária, porém, a quantidade deve estar subordinada à qualidade. Aqui reside o problema. Qual o resultado da distribuição de terras? Como vivem os novos agricultores? Qual o custo benefício dessa política? Deixando a quantidade e olhando a qualidade, a maior se transforma na pior reforma agrária. É decepcionante.


    Primeiro, o aspecto produtivo. O efeito macroeconômico da reforma agrária na produção rural é nulo. A produção dos assentamentos beira o nível de subsistência das famílias, com parcos excedentes destinados aos mercados locais, raramente regionais, especialmente gêneros básicos, como mandioca, legumes e ovos. É bom, mas pouco!


    O assunto parece tabu. Por incrível que pareça, inexistem dados agregados suficientes para aquilatar, com razoável precisão, o retorno produtivo da área reformada na agricultura. É lamentável. Fica-se na dependência de informações obtidas em pesquisas restritas: tal assentamento é excelente, este produz abacaxi, lá se produz leite, aquele está abandonado. Bons exemplos são exaltados. Mas estatísticas, mesmo, ninguém tem.


    Essa lacuna sobre a produção dos assentamentos indica uma marcante característica da reforma agrária: no paradigma distributivista, importa punir o latifúndio, assentar logo. Quanto mais, melhor: a reforma deve ser rápida e maciça.


    Nesse sistema, em que imperam as invasões de terra e o governo trabalha a reboque dos acontecimentos, sempre pressionado, a qualidade vai para o brejo. Esta é a triste realidade dos assentamentos rurais: falta produção, a infra-estrutura é insuficiente, a qualidade de vida dos assentados é sofrível.


    Estudos do Incra, embora limitados, atestam que 40% dos assentamentos não dispõem de nenhum tipo de assistência médica. Na educação infantil o quadro melhora: 88% têm escolas, mas apenas 10% proporcionam cursos de alfabetização de adultos, num público em que 40% são analfabetos ou semi-analfabetos.Em 60% dos locais, as estradas, quando chove, impedem a passagem, suspendendo as aulas. Menos de 30% dos assentamentos contam com luz elétrica. Telefone nem pensar.


    Favelas rurais – assim se configura, tristemente, boa parte dos assentamentos. O nível de renda continua baixo, muito dependente de ganhos “extras”, como aposentadoria e serviços assalariados. Vivem melhor que na cidade, argumentam os defensores do modelo. Pode ser verdade. Afinal, além de produzirem sua roça, recebem dinheiro de graça do Estado.


    Mesmo assim, 30% das famílias, na média, abandonam seus lotes e retornam à origem. No Norte, não raro a evasão ultrapassa 50%; no Sul, assentamento surgido de invasão chega a atingir 47%. Nenhum atestado será mais terrível. Por que as famílias abandonam seus lotes?


    As causas são variadas. Começam pela baixa qualidade das terras desapropriadas. Em 1998, 26,7% delas se classificavam nas classes 5 a 8, que significa os piores solos, no conceito agronômico. Em 1999, aquela porcentagem subiu para 34,8%. Quer dizer, as áreas desapropriadas estão, progressivamente, recaindo sobre terras impróprias para cultivo.


    Terras fracas, homens despreparados. As invasões de fazendas aglutinam trabalhadores desempregados nas cidades, sem aptidão para o trabalho rural. Certos acampamentos de sem-terra, recenseados pelo Incra, mostraram que a origem urbana das pessoas chega a 75%. Pior: no processo de seleção, fica difícil separar os verdadeiros sem-terra dos malfeitores e oportunistas de toda espécie, que se infiltram no acampamento.


    É preciso afirmar claramente: sem qualificação adequada, ninguém se torna agricultor de sucesso. Antes, bastava uma enxada e vontade de trabalhar. Hoje a tecnologia domina e o mercado estrangula o produtor. Muito treinamento e estudo se exigem, para descobrir o que plantar e para onde vender. Como planejar, entretanto, se a sofreguidão é a marca do processo?


    Restritivas, ainda, são as distâncias dos mercados e as deficiências de infra-estrutura. Em 1997, técnicos do governo reunidos no BNDES estimaram em US$ 14 bilhões o débito da reforma agrária, calculado apenas até 1998. Chamaram-no de uma “expectativa de direito”. Esta conta só cresceu, juntamente com milhares de novos assentamentos. Conclusão: o modelo de reforma agrária tornou-se financeiramente insustentável.


    A terra não é passaporte para a felicidade, como idilicamente imaginam os simpatizantes do distributivismo. A reciclagem profissional, com certeza, ofereceria melhores resultados para a inclusão social dessas categorias marginalizadas. Infelizmente, a reforma agrária tornou-se uma péssima, e caríssima, política social.


    Certo, significa uma enorme responsabilidade distribuir mais terra. Exceto, talvez, para aqueles grupos que se encontram hoje acampados. Fora disso, o caminho da solução exige consolidar os assentamentos existentes e direcionar uma nova política fundiária. Para garantir o emprego e a renda dos “com-terra”.

 
    Xico Graziano, OESP, A2, 18.02.2003.