Os leigos e a Paz de Deus
    José Tadeu Cordeiro

 

 

No ano mil da Paixão do Senhor, anunciou-se em todas as dioceses a realização de concílios em lugares determinados, reunindo os prelados e os príncipes de todo o país para a reforma da paz e a instituição da santa fé.A iniciativa parece ter partido dos bispos e dos superiores dos mosteiros, notadamente do abade de Cluny; e os prelados conseguiram conquistar para suas idéias os membros da alta aristocracia regional, obtendo que presidissem, em sua campanha, os concílios de paz.


    Em que medida a situação dos leigos foi modificada pelos regulamentos que esse movimento suscitou e pelas representações mentais cujo nascimento ele favoreceu?


    Como todos os fatos da história religiosa, o movimento pela paz de Deus se apresenta na verdade sob dois aspectos: o espiritual e o temporal. Por um lado às instituições de paz são concebidas e estabelecidas em função de certas aspirações à perfeição e à salvação, apresentam-se como um dos meios de realizar o reino de Deus e são por isso portadores de valores morais. Por outro lado, o movimento responde a uma certa inserção da Igreja no âmago do século, de seus problemas e de suas mudanças. A paz de Deus, considerada como agente de renovação da noção de laicato, participa, como uma de suas manifestações iniciais, desse impulso que subverteu a cristandade do Ocidente e culminou, no fim do século XI, na Reforma Gregoriana e nas Cruzadas, ao tempo em que colaborava para fixar os traços da sociedade feudal.


    Raul Glauber integra o movimento da Paz ao esforço geral dos altos dignitários da Igreja para subtrair essas pressões do temporal, para situá-la, em posição dominante e torná-la capaz de uma missão que antes pertencia à realeza: conduzir o povo de Deus a sua salvação. O que era ver justo.


    Nos anos 990, a realeza tinha perdido todo o poder, toda a ação sobre os poderes laicos. Estes exerciam a partir daí, a título privado em seu benefício, as regalias, as prerrogativas de comando outrora delegadas ao soberano e que eles detinham agora pelo direito hereditário. Julgar, punir, tornava-se, desde então, uma oportunidade de arrecadar das populações taxas lucrativas: as consuetudines. Cada um dos senhores leigos herdara tal direito e procurava estendê-lo, reivindicando-o, notadamente das terras e dos homens da Igreja. Esses homens e essas terras eram protegidos pelos privilégios de imunidade, que o enfraquecimento do poder real tornava sem efeito. Entre as regalias que passavam ao patrimônio privado dos condes, na Gália meridional, figurava o direito de nomear as mais altas dignidades religiosas, de dispor das sedes episcopais e das abadias.


    De duas maneiras os poderes temporais ameaçavam as liberdades da Igreja: a fortuna de Deus e dos santos de um lado e os ofícios pastorais de outro, acabavam, em 990, passando ao controle e à exploração de uma autoridade privada, não sagrada como o rei, mas meramente consuetudinária. O espiritual tornara-se escravo e libertar-se era o desejo de parcela do clero não de todo contaminado pelas práticas simoníacas, notadamente daqueles que estavam em contato com o movimento de Cluny.


    As disposições dos primeiros concílios são a de proteger contra a violência e contra as instruções dos novos poderes laicos, que se constroem então e se defrontam numa concorrência agressiva, as “coisas sagradas”, os “servidores de Deus” e, por fim, os “pobres”.


    Duby cita Charroux, 989, onde três categorias de violência são reprimidas: o anátema punirá primeiro aos que violarem a Igreja e ali tomaram qualquer coisa à força, em segundo, aos que agrediram um clérico desarmado e, por fim, os que despojaram um camponês e ou um pobre qualquer.


    As decisões dos concílios de paz retomam os termos das capitulares e dos editos carolíngios, só que alterando a paz do Rei (dos textos do século IX) que defendia “os pobres, os órfãos, as viúvas e a Igreja de Deus” pela paz de Deus, que transferia, numa região, mais do que qualquer outra privada do poder do rei, aos próprios bispos, que fariam reinar a paz de Deus, usando as sanções espirituais, trabalhariam, como está no Primeiro Concílio de Potiers (1011-1014) para a restauração da paz e da justiça, missão eminentemente real. O movimento de paz surgiu como uma tentativa de combater o enfraquecimento de uma autoridade real, em que se confundia espiritual e temporal.


    Duby observa ainda que o Concílio de Potiers não legislava apenas contra a violência que ameaçava as coisas sagradas, mas também contra a simonia e o concubinato dos padres. Nesse momento começa-se a querer que os cléricos respeitem os interditos que até então só eram impostos aos monges – as duas ordens, cléricos e monges tendem a confundir numa só, isolando-se mais os leigos.

 


    Em seu esforço para proteger as coisas de Deus e impedir que as terras da Igreja fossem desonradas por algum mau costume, os bispos, os juízes e defensores dos cléricos e dos monges foram levados a proteger uma parte do povo leigo, aqueles que os reis, outrora, tinham a missão de salvaguardar. Daí em diante, os leigos foram divididos em duas categorias: aqueles que era preciso defender e aqueles cujas tendências agressivas era preciso reprimir. Os primeiros eram os pobres – camponeses, principalmente, mas também mercadores, peregrinos e mulheres nobres. Aos pobres, os textos opõem os nobres, especialmente os “cavaleiros”, amaldiçoando-lhes as armas e os cavalos.


    Com efeito, a violência, a cobiça e as exações prejudicavam a Igreja, aos servidores de Deus e aos pobres. No momento em que o vocabulário das decisões conciliares começa a distinguir cavaleiros e camponeses, também as cartas redigidas na Gália do Sul se empenha em opor as mesmas categorias sociais.


    Aos milities, os primeiros concílios de paz não davam o direito de combater. As armas lhes conferiram poderes, principalmente o de julgar e punir. Desde a origem, a legislação da paz de Deus prevê que só ficarão ao abrigo da violência secular os “pobres” que não cometeram delitos. “Que ninguém tome o haver de um camponês”, proclama em 1054, o Concílio de Narbone, “a não ser seu corpo, por um delito que ele próprio tenha cometido, e que ninguém o submeta a um poder a não ser direto”. O que se condena é a pilhagem injusta. São justas as multas de justiça e as exações regularmente recolhidas, o poder banal, a submissão ao senhor. Por outro lado, os cavaleiros, homens perigosos, mas igualmente, homens ameaçados, têm o direito de enfrentar seus inimigos desde que estejam armados, mesmo que sejam cléricos : a paz de Deus só protege cléricos desarmados.


    A guerra privada não é condenada, o que os primeiros concílios buscam é um sistema de sanções e compromissos coletivos, proteger contra a agressão e a pilhagem determinados lugares e categorias sociais. A paz de Deus, no começo, tendeu a circunscrever a violência militar aos homens que usavam o glaúdio e o escudo e, que andavam a cavalo.


    Com o desenvolvimento das reformas, alguns prelados passaram a considerar que o reino de Deus exigia medidas mais profundas. Desde o seu nascimento, a exigência de paz se achava inclusa numa vontade mais geral de purificação. Aos olhos do movimento reformista, combater, portar armas e delas se servir começava a ser considerado, no fim do século X, uma mácula, da mesma forma como o gosto pelo dinheiro e o ato sexual.


    Desde sempre, tornar-se monge era renunciar a espada, assim como ao ouro e as mulheres. Num corpo de servidores de Deus, a intenção pacífica se encontrou ligada ao ideal conjunto de castidade e da pobreza, do qual os gregorianos se tornariam paladinos.Essa concepção prosperou, favorecida pelas instituições da paz de Deus. Afigurava-se cada vez mais necessário que os padres fossem pobres, levassem como os monges uma vida comum. Logo se considerou que eles deviam depor armas (como os monges) e situar-se entre os inermes. Os textos do fim do século XI proibia assaltar os cléricos, que já não portavam armas.


    Mas logo o mesmo ideal foi proposto aos leigos, como um compromisso salutar de penitência. Reunindo multidões em torno dos relicários cobertos de virtudes, impondo aos leigos reunidos uma profissão coletiva de renúncia, eles visavam a conjurar a ira de Deus, a vencer os flagelos, a fazer recuar a fome e as pestes. Talvez fosse mesmo preciso situar sua intenção deliberada de penitência suscitada pela aproximação do milênio da Paixão e pela expectativa do fim dos tempos. Raul Glaber vê multiplicarem-se as perigrinações.


    A paz de Deus muda então de caráter. Já não é apenas um pacto social, cimentada pela ameaça de sanções espirituais. Ela assume resulutamente o aspecto de um pacto com Deus. Trata-se de apaziguá-lo mediante a promessa de abstinências voluntárias ; trata-se, diante de sua cólera, de purificar-se do pecado.


    Por volta de 1033, a Igreja propôs aos leigos que eram armados, os nobres e os milities, associarem-se a obra comum da renúncia. Que não mais se contentem em respeitar os regulamentos anteriores da paz, evitando, no curso das operações militares ou no exercício do poder senhorial, causar danos a Igreja, aos ministros de Deus e aos camponeses. Que aceitem também, no campo da atividade permitida pelo direito mas que se começava a julgar perigosa para a alma, privar-se da guerra de combate e da pilhagem. Os cavaleiros foram exortados a abster-se da guerra em certos períodos, tam como o povo inteiro se abstinha em determinados períodos de alimentos muito agradáveis, e isso no mesmo espírito de pobreza.


    A obrigação de respeitar a paz veio a juntar-se a trégua, suspensão geral e temporária da atividade militar. Em certas datas, a classe guerreira, por um movimento de conversão quase monástica, proibe a si mesma esse prazer, cita o exemplo do cavaleiro que durante a Quaresma se despojasse voluntáriamente de seu arnês militar. Ninguém devia atacá-lo. A estipulação era inovadora por revelar uma inclinação, talvez nova entre os homens de guerra, a considerar a abstinência do combate como salvadora e praticá-la durante o tempo de redenção da Quaresma. Quatro anos depois, o Concílio de Elne impunha a trégua aos domingos. Outra medida natural, nesse dia santo os trabalhos servis eram considerados ilícitos. No Concílio de Arles (1037-1041) desde a quarta feira à noite até segunda feira de manhã, a paz devia reinar “entre todos cristãos, amigos ou inimigos, vizinhos ou estrangeiros”, isto em memória de Cristo, de sua ascensão e paixão, de seu sepultamento e de sua ressurreição.


    A partir do momento em que, pela paz e, sobretudo, pela trégua encontrou-se reprimida a agressividade dos cavaleiros, importava-lhe proporcionar-lhe outras saídas. A proposta da Cruzada encontrava-se em germe nas disposições dos concílios de paz, pois estas haviam progressivamente ampliado, no seio do povo de Deus, o campo proibido à guerra. Em 1054, o Concílio de Narbonne pronuncia esta condenação: “Que nenhum cristão mate outro cristão, pois quem mata um cristão, derrama o sangue do Cristo”. Ora, o cavaleiro recebera de Deus a missão de combater. Daí por diante, não lhe foi mais permitido fazê-lo senão no exterior da comunidade cristã e contra os inimigos da fé. O Concílio de Clermont (1095) foi antes de tudo um concílio de paz, porque retomou as injunções de penitência, conferiu valor universal as estipulações, até então locais, da trégua de Deus, e, sobretudo, porque a intervenção pontifícia estendeu a todos aqueles que empreendessem a viagem de penitência a Terra Santa os privilégios até então assegurados aos pobres, aos leigos sem armas. A Cruzada leva a exigência da paz de Deus à sua realização, porque suscita a partida do povo dos pauperes para Jerusalém, isto é, para o Reino, inaugurando assim uma marcha confiante, pacífica, desarmada, porém irresistível. Cabe aos cavaleiros penitentes flanquear esse novo êxodo, protegê-lo, forçar, se for necessário, o seu progresso combatendo os incrédulos. Todas as fórmulas das Cruzadas são extraídas dos cânones dos concílios anteriores da Gália do Sul, até o simbolismo da Cruz, baluarte contra as violências, sinal de proteção e de asilo.


    O reformatio pacis se tornara necessário em virtude da degradação da instituição real e da evolução da sociedade, na qual a atividade guerreira se convertia no privilégio de uma determinada classe. Primeiro foi preciso defender-se dela, discipliná-la e depois esforçar-se por desviá-la para o bem. Assim, só uma porção do laicato, os cavaleiros sofreram diretamente a influência das instituições de paz. Mas esta foi profunda. A regulamentação promulgada pelos concílios fixou-se inicialmente os contornos desse corpo social, forjou-lhe uma moral particular. No limiar do século XII, a nova militia recebia a incumbência de duas tarefas conjuntas: as do “homem probo” que defende a Igreja e os pobres e de combater os inimigos de Cristo.


    José Tadeu Cordeiro baseou-se em Georges Duby, A Sociedade Cavalheiresca.

 


    Interpretando o texto.


01.O que é a Paz de Deus?O que ela pretende mudar ? Por que ela é necessária nesse período (séc. XI)?


02.Como foi essa mudança para os cavaleiros? Qual a importância das cruzadas nessa mudança?


03.Como a Igreja obteve o apoio dos cavaleiros? Como isso mudou o comportamento da nobreza?