Razões da Democracia
   
Renato Janine Ribeiro

 

 

A democracia é o poder do povo (“demos” = povo, “kratos” = poder). Não quer dizer que o povo governe diretamente: tanto na Grécia como no mundo de hoje, as funções de poder eram delegadas. Mas o decisivo é que isso se faça em nome do povo e de sua vontade. Ainda hoje, a democracia ateniense, que durou só dois séculos (do 6º ao 4º antes de Cristo) e afetou apenas dezenas de milhares de pessoas, parece admirável. Nossa democracia é representativa, isto é, os cargos de poder são atribuídos, em eleição (ai se manifesta o povo), a alguns atores políticos que nos representam – presidente, governador, deputados. A democracia grega era direta, ou seja, cada semana e meia, o povo de Atenas se reunia e decidia todo tipo de questão.


    Isso é impraticável numa sociedade como a nossa, não só porque em países grandes não há como reunir a população toda em um único lugar, mas, sobretudo, porque poucos se disporiam a deixar seus afazeres privados e os prazeres pessoais para discutir política toda semana. Mesmo assim, há uma crítica forte à democracia representativa, porque nela os representantes ficam muito soltos: fazem o que querem, já que seus eleitores, afinal, só os controlam a cada tantos anos.


    Por isso, uma questão fundamental, hoje, é como tornar a democracia mais efetiva. Há duas possibilidades. Uma é manter a representação, mas fazer os representantes prestarem contas aos representados. A transmissão das sessões legislativas pela TV, uma cobertura detalhada pela mídia (como a que a Rádio Eldorado de São Paulo faz da Câmara Municipal), o hábito do eleitor de escrever a seu deputado ou vereador, a formação de redes que divulgam os votos dos parlamentares e a supressão do voto secreto nas sessões do Legislativo são alguns meios de fazer a cidadania controlar os políticos.


    Outra maneira é introduzir, sempre que possível, a democracia direta, que seria uma injeção de Grécia na nossa sociedade. Decisões sobre um bairro, como as tomadas no Orçamento Participativo que começou com o PT de Porto Alegre, mas se estendeu a outros Estados e partidos, são exemplo de escolhas que se pode tomar em uma assembléia dos diretamente interessados. Em suma, a democracia direta exige que as pessoas não se limitem a votar uma vez a cada dois anos, mas se mantenham ligadas por seus interesses e desejos, afim de que o poder – que só é legítimo porque foi eleito – os respeite.


    Comecei pela representação porque ela é a grande diferença entre a democracia antiga e moderna. Houve um quase eclipse da democracia por mais de 2.000 anos, isto é, entre o fim da democracia ateniense e a recuperação dessa forma de governo com as revoluções americana (1776) e francesa (1789). Ora, as jovens republicas estadunidense e francesa representativas têm outra diferença da Antiguidade: elas proclamam uma declaração de direitos.


    Esses direitos humanos são um traço essencial da democracia moderna. Englobam o direito a vida, a um julgamento honesto, à liberdade de escolha, à propriedade. Seu elenco só tem aumentado: em 2.000, a Constituição brasileira foi emendada para incluir, entre os direitos humanos, o direito à moradia. Aliás, nossa Constituição proíbe qualquer emenda que suprima direitos humanos (artigo 60).


    O importante, aqui, é que o poder do povo, hoje, não pode eliminar esses tipos de direitos que supõe-se que antecedem o próprio poder do Estado, isto é, que são superiores à própria política. É por isso que se fala em declaração de direitos: uma assembléia (como a da ONU, em 1948, autora da Declaração Universal) pode declarar que tais direitos existem, mas não pode criá-los, nem suprimi-los, porque eles são mais importantes do que ela própria. É como se eles fossem “naturais”, palavra que vem do verbo “nascer” e que indica que nascemos com eles.


    Isso deixa empatado o jogo entre democracia antiga e moderna. A democracia ateniense fez 1 a 0, porque a democracia direta é vista por muitos como superior à representativa (só que impossível em nossos tempos). Mas a democracia moderna marca um tento com os direitos humanos: Sócrates não teria sido condenado à morte numa sociedade democrática de nossos dias. Aristides não teria sido banido de Atenas.


    Por isso, a democracia atual não consiste só em eleições. Ela também inclui todo um rol de direitos humanos, bem variados. Os primeiros direitos humanos, entre o século XVII e o XVIII, foram os civis, isto é, associados a um cidadão que seria, também proprietário. É o direito de ir e vir, o de manter a propriedade, o de só pagar impostos votados, o de assinar contratos, o de não viver atemorizado por um governo caprichoso e autoritário.

 


    Depois, entre os séculos XVIII e XIX, crescem os direitos políticos. Os homens deixam de ser súditos (“sub”= sob, “dictus” = dito), isto é, subordinados ao que um rei manda, e passam a ser realmente cidadãos, isto é, sujeitos que decidem o que a cidade (= o Estado) vai fazer. Aqui estão o direito de voto, de expressão do pensamento, de organização política. Mais tarde, desde o século XIX, aparecem os direitos sociais: o de livre organização sindical e as leis trabalhistas, garantindo condições de trabalho melhores. Esses, hoje, estão ameaçados.


    Alguns falam em mais um tipo de direitos, que seriam difusos, porque nos três tipos anteriores sabemos muito bem, sempre, quem está sendo beneficiado (o proprietário, o eleitor, o trabalhador) – mas, quando se trata, por exemplo, do ambiente, de certa forma todos os seres, e até os não humanos, são beneficiados. Por exemplo, se proibimos a caça de certas espécies, de quem é esse direito? Nosso, dos humanos, ou dos próprios animais? Como nosso direito tem dificuldade em reconhecer um direito sem titular, e esses titulares são sempre homens ou mulheres, a questão aqui é espinhosa.


    A democracia ressurge, dizia, há poço mais de 200 anos. Mas demora para se instalar como um regime respeitado. Na França a 1ª República é a do Terror e da guilhotina. Só a partir de 1875 é que a República Francesa se consolida. E, em termos mundiais, a palavra democracia só se tornou positiva a partir da guerra contra Adolf Hitler (1933 – 1945). Desde então, quase ninguém se atreve a ser contra a democracia. O máximo que se faz é criticá-la em situações nas quais não seria, talvez, válida (veja a polêmica sobre eleição direta, ou não, dos reitores das universidades).


    Isso mostra que a democracia se tornou, hoje, um valor. Embora as palavras democracia e política definam, tecnicamente, coisas diferentes – pode haver uma política conservadora, monarquista, fascista –, o fato é que a principal característica hoje atribuída à política (que nela os conflitos se resolvem com palavras, e não pela força) convém como uma luva à democracia.


    Ela se tornou um valor. Ninguém se diz antidemocrata, nem os ditadores, que falam em democracia relativa (general Geisel, ditador do Brasil entre 1974 e 1979) ou popular (regimes comunistas). Mas aqui há que distinguir. Parte dos estudiosos da democracia, hoje, sobretudo na ciência política, entende a democracia como um procedimento de resolução de conflitos. Esse procedimento é bastante eficaz porque nele a parte derrotada teve as mesmas chances da vitoriosa e por isso acata o resultado melhor do que se a decisão fosse de uma pessoa só. Mas isso não implica que seja esse método o melhor em si: é melhor devido ao resultado, que é o de manter o tecido social melhor do que no caso de decisões arbitrárias. Mas, assim, a democracia vale por seus efeitos, não por ser boa em si.


    Outra idéia é que a democracia é um valor, e portanto, mesmo se não funciona bem, mesmo que seus resultados deixem a desejar, ainda vale a pena pagar o seu preço. Não pagamos pela beleza, quando compramos um objeto que desejamos? Por que não pagaríamos por um regime que torna o convívio humano justo ou melhor? É o que justifica a proposta de uma constante ampliação da democracia. Ampliá-la quer dizer que ela deixa de ser só um conjunto de instituições políticas para intervir também nas relações ditas da vida privada.


    Enquanto em nosso mundo o aparelho de Estado se democratiza ou pode ser democratizado, há mais resistências à democratização da vida privada. Vida privada, aqui, quer dizer duas coisas. Primeiro o conjunto de relações de trabalho, geralmente marcadas pelo domínio do capital (o patrão) sobre o trabalho (o empregado). Segundo, as relações afetivas – o casal, a família, a própria amizade.


    À primeira vista, essas relações não são políticas e a democracia não caberia nelas. Mas são relações de poder, e isso implica que haja uma política do amor e uma da empresa. Além disso, vários teóricos acham que só pode haver democracia se houver uma cultura democrática.Quer dizer que a democracia, mesmo institucional e representativa, só se consolida se ela não for uma escolha apenas racional das pessoas, mas uma escolha afetiva.


    Significa fazer que a democracia entre nos sentimentos. Significa que, percebendo que em nosso país, pelo menos, são os políticos mais conservadores quem melhor manejam os afetos populares (ACM, Maluf), os progressistas passem a lutar para criar um amor pela igualdade e pela liberdade. Essa base para a democracia seria mais forte do que uma base racional ou institucional. Seria essa uma cultura democrática, entendendo aqui cultura como o ambiente em que nos ancoramos não só consciente e racionalmente, mas afetivamente.


    Renato Janine Ribeiro, 52, é professor de Ética e Filosofia Política na USP.Sinapse, Folha, 28.01.2003. pp. 24/25.
 


 

Interpretando o texto

1ª Qual o significado de democracia? Em que sentido a democracia se aproxima da política?


2ª Como tornar a democracia mais efetiva?


3ª Como o autor compara a democracia dos gregos à democracia que renasce no séc. 18?


4ª O que o autor quer dizer com “ampliar a democracia para a vida privada”? Como você analisa isso na sua vida?