Reforma Agrária na marra*
    Luiz Fernando Sá e Carlos Carvalho

 

 

    A tradicional imagem das foices e enxadas erguidas em sinal de resistência é coisa do passado. Desde a semana passada, o retrato da luta dos agricultores Sem-Terra do Rio Grande do Sul pela reforma agrária exige revólveres na cinta, velhas espingardas de caça penduradas no ombro e coquetéis Molotov sendo preparados para um combate iminente. Pela primeira vez na história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, um grupo de 190 famílias que ocupa, desde último dia 25, a fazenda Arvoredo, no município de Ronda Alta, a 360 km de Porto Alegre, admitiu que possuía armas, exibiu-as ostensivamente e afirmou que estava disposto a usa-las para se manter na área.


Não fosse por isso, a ocupação da Arvoredo seria apenas mais uma das cercas de 60 já realizadas pelos Sem-Terra no Estado. Mas para o Movimento, ela marca uma definitiva mudança de atitude na luta pela terra no Brasil. Cansados de esperar pela reforma agrária, eles prometem conquista-la de forma cada vez mais radical. “A tendência, agora, é a da resistência armada”, adverte Darci Maschio, membro da direção estadual do Movimento dos Sem-Terra. “E vai chegar o dia em que a nossa capacidade de agüentar será ainda menor e que, em vez de nos defendermos, daremos o primeiro tiro”, completa. Para o caso das famílias que estão na Arvoredo, a situação é quase essa. Todas estão acampadas há quase quatro anos e muitas delas, como a de Valderi Antonio da Silva e sua mulher Maria de Lurdes, se formaram e multiplicaram dentro do acampamento. "Nós não temos mais para onde ir e o que fazer, então o jeito é se engajar e lutar", diz ele.


Até a última 5ª feira,28 nenhum tiro havia sido disparado. Mas mesmo assim os Sem-Terra tinham contabilizado uma vitória ao conseguir adiar a execução de uma ordem de despejo assinada pelo juiz de Ronda Alta, Nereu José Giacomolli, e ao fazer o governo gaúcho rever sua posição de “não negociar com invasores de terra”. Para Maschio, as duas decisões decorrem do imediatismo da ação de seu companheiros. As armas dos Sem-Terra, embora poucas e obsoletas se comparadas às da Brigada Militar, provocaram um impacto capaz de assustar o governador Pedro Simon. “Faço um apelo ao juiz para que veja as fotos publicadas nos jornais, intercedeu Simon na terça-feira,26. “Não é o caso de simplesmente dizer à Brigada Militar que vá lá e tire os invasores”, reforçou.


Ronda Alta transformou-se, já há algum tempo, na principal área de luta pela terra no país. Foi lá que, em 1979, surgiu o embrião do que é hoje uma grande organização. Cerca de 330 famílias expulsas da reserva indígena de Nonoai, também ao Norte do Rio Grande do Sul, ocuparam duas granjas de propriedade do governo do Estado no município, a Macali e a Brilhante, exigindo serem assentadas definitivamente no local, o que conseguiram meses depois. “Essas ocupações arrebentaram a porteira da luta pela terra em pleno período da ditadura”, recorda Ademar Bento, um dos invasores, hoje presidente do Sindicato dos trabalhadores Rurais de Ronda Alta.


Com a porteira aberta, a luta dos Sem-Terra passou a se dar de forma mais organizada. Em 1981, um grupo de remanescentes das primeiras ocupações montou na Encruzilhada Natalino – nó limite dos municípios de Ronda Alta e Sarandi – aquele que seria o primeiro acampamento organizado de Sem-Terra. O local passou a ser um marco para os colonos, que pretendem comemorar lá, nos dias 28 e 29 de outubro com a presença do candidato do PT à Presidência da República, Luis Inácio Lula da Silva, os dez anos de fundação do movimento. Na verdade, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra só foi criado oficialmente em 1983 na própria Encruzilhada Natalino e ganhou fama em 1985 quando conseguiu mobilizar mais de 1500 famílias para a ocupação da Fazenda Annoni, uma área de nove mil há em Sarandi.


A Natalino e a Annoni até hoje são o principal foco de conflitos de terras no Rio Grande do Sul. Elas encontram-se bem no centro da região norte, formada por pequenas e médias propriedades responsável por 80% da produção agrícola do Estado. Sem espaço para buscarem novas áreas nessa região, os filhos dos produtores já instalados começaram a formar uma mão de obra excedente que, durante vários anos, emigrou para Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso. O acampamento da Natalino foi o primeiro foco de resistência migratória e os antigos migrantes passaram a ser os Sem-Terra e a brigar pelo direito de permanecer na região. Hoje além das 190 famílias da Arvoredo, que ficaram quatro anos na Annoni e acabaram de fora do rateio da área, há cerca de mil famílias acampadas em Palmeira das Missões.


Cruz Alta, quase no centro do Rio Grande do Sul, tem tudo para se transformar no principal palco da luta pela terra. Para o Movimento, o município é uma espécie de posto avançado para chegar aos latifúndios do sul do Estado e, por isso, já foi alvo de uma grande ofensiva. No último dia 19, por exemplo, o Movimento reuniu 56 caminhões e outros veículos para levar cerca de 12 mil pessoas a uma fazenda no município. Mesmo com as barreiras montadas pela Brigada Militar, cerca de três mil pessoas conseguiram chegar a Bacaraí, onde acamparam por dois dias. Depois, graças a um acordo com o governo do Estado, foram transferidos para uma área do Incra, a fazenda Boa Vista, onde hoje montam uma verdadeira cidade de barracos de lona.

 


“Em vez de repudiar, os representantes da sociedade capitalista de Cruz Alta deveriam entender que só podem lucrar com o assentamento de Sem-Terra na região”, afirma o economista Jurandir Zamberlam, professor na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Cruz Alta. Zamberlam está terminando uma pesquisa realizada em oito assentamentos já feitos no município de Cruz Alta, Ibirubá, Salto do Jacuí e Fortaleza dos Valose conclui que a produtividade dos assentamentos chega a ser até seis vezes maior que a médias dos municípios. Embora contem, em média com apenas 5,05% da área dos municípios pesquisados e 3,54% da população, os assentados produzem cerca de 22% do milho colhido, 7% da soja e 31,6% do arroz. “E, por diversificarem mais as suas culturas, os assentamentos, tendem a trazer junto de si a agroindústria”, explica Zamberian.
Os 56 assentamentos – onde vivem cerca de 2.600 famílias – do Rio Grande do Sul são um dos orgulhos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Alguns deles são verdadeiros cartões- postais incrustados bem no centro da região do conflito. Em um canto da fazenda Annoni, por exemplo, um grupo de 35 famílias trabalha 730 há de terras coletivamente há pouco mais de dois anos e já são apontados como produtores-modelos, conseguindo colher mais de 2.500 quilos de soja por hectare quando a média da região é 1.600. “No acampamento tivemos muito tempo para discutir o que faríamos quando recebêssemos a terra. Agora temos de trabalhar”, gaba-se Nelson Grassielli, um dos líderes do assentamento Holandês.


Desde que chegou ao assentamento, o grupo tem investido todos os recursos disponíveis na lavoura e na aquisição de equipamentos, como seis tratores e três colheitadeiras e só agora começa a pensar no conforto: nos próximos dias, oito famílias mudam-se de barracos improvisados no paiol para amplas casas de alvenaria construídas no local, onde prometem plantar uma agrovila.
 

 

     Cotidiano da Ocupação

     O trabalho coletivo é hoje quase uma palavra de ordem no Movimento dos Sem-Terra gaúchos, tendo sido adotado em vários assentamentos, sempre com bons resultados. Cada grupo que utiliza o sistema forma associações para tratar da compra e venda de insumos, produtos e divide as tarefas do assentamento por diversas equipes em setores. Quase todos os assentamentos têm as suas próprias escolas, que seguem currículos próprios. “A matemática é ensinada na lavoura com as crianças contando os grãos”, explica Zolmir Calegari, do assentamento de Nova Ronda Alta. Na pedagogia do movimento, a cartilha diz que a letra “a” é de assentamento, a “b” de barraco, a “t” é de terra, etc.

     Outra conquista dos assentados junto ao Movimento foi a instalação, em 84, do Centro de Tecnologia Alternativa Popular (Cetap), que realiza pesquisas agropecuárias e presta assistência técnica aos antigos Sem-Terra. O Cetap só pode funcionar graças a uma ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que comprou a área ocupada pelo centro.As comunidades Eclesiais de Base (CEBs) foram instaladas logo depois das primeiras ocupações de terra a fim de organizar os acampamentos, transformando-os em verdadeiras universidades dos movimentos populares.

     Nesse caso, o reitor seria o padre Arnildo Afonso Fritzen, da Paróquia de Ronda Alta, e os alunos mais ilustres teriam sido o deputado estadual Adão Preto (PT), o sindicalista Ademar Bento e o líder do movimento, Darci Maschio. Também é cria das CEBs o responsável por uma verdadeira revolução no município de Ronda Alta, o atual prefeito Saul Barbosa (PT). Ex-agricultor e ex-motorista da prefeitura, Barbosa descobriu nas discussões da CEBs uma vocação para sindicalista que o levou, em 1985, à presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ronda Alta. A partir de então, uniu-se ao Movimento dos Sem-Terra e a outros movimentos populares da cidade num plano ousado.

     Através de coletas e de empréstimos conseguidos junto a bancos graças ao peso político do sindicato, Barbosa conseguiu, em 1986, comprar um dos hospitais da cidade, transformado no Hospital do Trabalhador e administrado pela Atra – entidade filantrópica formada por representantes das comunidades.

     Luiz Fernando Sá e Carlos Carvalho, Istoé Senhor, 04.10.1989.

Interpretando o texto

1. Qual a imagem tradicional da luta pela terra no Brasil? Qual a mudança representada pela luta dos agricultores gaúchos?

2. O que levou os Sem Terra a radicalizar a luta pela terra?

3. Descreva a situação dos Sem Terra no ano de 1989, no RS? Faça um resumo da luta dos Sem Terra.

4. Por que os capitalistas de Cruz Alta deveriam apoiar a reforma agrária, segundo os sem terra?

5. Descreva o cotidiano do trabalho no acampamento dos sem terra?

6. Qual a experiência de Saul Barbosa, destacada no texto?