Uma Europa laica e crente - Mário Vargas Llosa

 


    Agiram bem os governantes europeus ao aprovar um projeto de Constituição em cujo preâmbulo não se mencionam as “raízes cristãs” da Europa, como pediam alguns dirigentes e exigia o Vaticano.É claro que o cristianismo é um componente central da tradição e da cultura do Ocidente, mas deste modo a carta fundamental da nascente Europa unida sublinha o caráter laico do Estado e põe a religião e a vida espiritual dos europeus no âmbito que lhe corresponde: o privado.


    É graças a existência desta fronteira entre o público e o privado que a Europa é democrata. E é por ela não existir ou ser extremamente frouxa e porosa, e permitir que a religião invada o Estado e este se imiscua na vida privada, que vastas regiões do mundo – os países islâmicos, principalmente – tem dificuldades enormes, insuperáveis, para evoluir do despotismo autoritário à sociedade aberta.


    Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Durante muitos séculos o cristianismo foi assim, tanto quanto o islamismo radical, e combateu as outras religiões – o erro – com a espada e a boa consciência de quem se sabe aliado de Deus e porta-estandarte da absoluta, justíssima verdade. Ateus, judeus, maometanos, pagãos e mais tarde protestantes pagaram caríssimo por professar falsas religiões e adorar deuses fetichistas, e milhões deles foram forçados pelo terror a se converterem á verdadeira religião. Durante muitos anos, e até relativamente pouco tempo atrás, o catolicismo legislou e estabeleceu normas de conduta estritas na vida privada das pessoas, nem mais nem menos como nos Estados fundamentalistas islâmicos onde impera a sharia, embora seja justo assinalar que, com toda sua ferocidade repressora em matéria sexual, o catolicismo não chegou nunca aos extremos discriminatórios e denegridores contra a mulher do islamismo.


    A omissão da influência cristã na Constituição da União Européia, por outro lado, vai facilitar a incorporação da Turquia, um país que, embora constitucionalmente laico desde a revolução de Kamal Ataturk, tem uma população que em sua imensa maioria professa a religião muçulmana. Para poder integrar-se à Europa, uma aspiração compartilhada pelas principais forças políticas e apoiada, sobretudo, com paixão, pelas camadas mais modernas da sociedade turca e pelas mais empenhadas em fazer com que a Turquia aperfeiçoe sua deficiente democracia e alcance cota de legalidade e liberdade comparáveis às dos países mais avançados do Ocidente, os governos turcos deram passos muito importantes, tanto econômico como políticos, a fim de o país ser elegível como membro da Europa. Da abolição da pena de morte ao respeito ao pluralismo político e a liberdade de imprensa, passando pela independência dos juízes perante o poder político, a disciplina fiscal e a supressão dos entraves para que a minoria curda possa ter escolas que ensinem sua língua e desenvolver sua cultura sem censuras, nos últimos dez anos a Turquia foi, de longe, a sociedade muçulmana que mais avanços realizou no caminho da democracia. Que os sucessos, embora vários, sejam ainda insuficientes não há dúvidas. Porém, precisamente, nada pode estimular mais a modernização da Turquia do que ela sentir-se bem-vinda no concerto da Europa que nasce. Uma Europa, não esqueçamos, plural, cultural e politicamente falando, na qual, dentro de um denominador com democrático, deverão poder coexistir não só culturas, línguas e tradições, mas também religiões.


    Não é necessário destacar a importância que teria para todo mundo islâmico e, muito especialmente, para o formado pelos países árabes, o exemplo de uma Turquia capaz de conciliar sem traumas a fé no Alcorão e a cultura democrática, ou seja, de um país muçulmano que tenha conseguido, como a Europa cristã, seguir aquele processo de secularização – de privatização da religião – que torna possível a consolidação da liberdade em um país.


    Um Estado laico não significa uma sociedade atéia ou agnóstica, muito menos um governo inimigo da religião, como insinuou alguns dos recalcitrantes da menção das raízes cristãs da Europa na Carta de fundação da União Européia. Significa simplesmente que o Estado se compromete como tal a respeitar todas as religiões que os cidadãos professem e a não se identificar com nenhuma em especial, delimitando com toda precisão que a formula bíblica tão bem chamou de mundo de César e mundo de Deus. Enquanto não tratarem de impedir as crenças e práticas religiosas dos demais, os cidadãos são livres para adotar a fé e exercer o culto que quiserem.

 


    Todos os grandes pensadores da liberdade, de Kant a Hayek, de Adam Smith a Popper, de Tocqueville a Isaias Berlim, assinalaram, prescindindo das próprias atitudes em matéria religiosa, que uma rica e intensa vida espiritual é um requisito indispensável para que uma democracia funcione, e também que nada substituiu a religião como fermento e pátria da espiritualidade, esta é também, minha profunda convicção. Só para uma minoria, e creio que muito reduzida, de pessoas, a cultura, as idéias, as artes, a filosofia bastam para substituir a fé religiosa como alimento espiritual e para lhe infundir esta segurança mínima com respeito à transcendência sem a qual é difícil, talvez impossível, que uma sociedade libere toda sua energia criativa e viva num clima de harmonia, confiança e ordem que lhe permita aproveitar todas as oportunidades que a liberdade oferece. A melhor prova de que as coisas são assim é o fracasso sistemático de todas as tentativas históricas, começando pela revolução francesa e terminando com as revoluções soviéticas e chinesa, de desenraizar a religião dos espíritos e substituí-la por uma ideologia materialista. No fim, estas religiões desapareceram ou se transformaram em caricaturas de si mesmas, e a religião que sobrevivera na catacumba, renasceu com tanto ou mais vigor que antes. Não se pode erradicar Deus do coração de todos os homens; muitos deles, talvez a grande maioria, precisam d’Ele para sentir-se extraviados e desesperados num universo onde sempre haverá perguntas sem resposta. Porém, assim como não se pode acabar com a religião, pode-se – e este é o grande trunfo da cultura da liberdade – desestatizá-la e confiná-la ao âmbito da vida privada, de modo que a liberdade possa se desenvolver e os cidadãos estejam em condições de empregar todo seu potencial criativo sem freios e limitações que uma religião identificada com o Estado inevitavelmente impõe, recortando, às vezes até limites intoleráveis, a soberania humana.


    É natural e inevitável que, num Estado laico, as organizações religiosas tratem de influir na criação das leis, de modo que estas coincidam com, ou reflitam, as convicções, modos de conduta e preconceitos que as animam. E em muitíssimos casos esta propensão não é nula, e sim benéfica para o funcionamento das instituições democráticas. Porém, em certos assuntos, como o divórcio, o aborto, a eutanásia, os casamentos entre gays e lésbicas, ela não é, e surgem desavenças e polêmicas. Bem vindas sejam, pois a essência de uma sociedade aberta é o debate e o constante questionamento das normas que regulam a marcha da sociedade, em prol dessa melhora.


    No entanto, assim como a obrigação de um Estado laico é não invadir a vida privada das pessoas – sua vida familiar, sexual, espiritual e religiosa – também é, em caso de conflito com as organizações religiosas, fazer prevalecer a própria noção de bem comum, respaldada pelo mandato cívico depositado nos órgãos soberanos da vida pública, o Parlamento e o governo, resistindo às pressões confessionais. Assim como, no passado, o divórcio e o aborto provocaram controvérsias apaixonadas, é óbvio que algo semelhante ocorrerá por causa do anúncio, feito recentemente pelo ministro da justiça espanhol, de que o governo vai propor uma reforma do Código Civil a fim de autorizar o matrimônio entre casais do mesmo sexo, com todos os direitos e deveres, incluindo o da adoção de menores. Se esta lei for finalmente aprovada pelas Cortes, a Espanha será o terceiro país do mundo, depois da Holanda e da Bélgica, a legalizar a união e o direito de adotar crianças dos casais homossexuais. De meu ponto de vista, é um avanço em matéria social e institucional, pois corrige uma discriminação e injustiça para com uma minoria vítima de perseguição e preconceitos seculares, que deve ser celebrado.


    Ao contrário dos que pensam que, com um passo tão ousado, será dado um golpe de morte contra a família, contra o matrimônio, o efeito será, provavelmente, o oposto. O certo é que, se há algo que na sociedade moderna está em crise, é a família e, muito especialmente, o matrimônio. Cada vez menos pessoas se casam e, sobretudo entre os jovens, as uniões de fato, alianças transitórias e muitas vezes bastante precárias, são as mais freqüentes em todos os setores sociais e o número de divórcios aumenta à medida que o matrimônio tradicional diminui. Não é difícil imaginar que, se a idéia de matrimônio formal, legitimado pela autoridade, desperta em algum coletivo social uma poderosa ilusão e uma vontade de que tenha êxito, dure e seja capaz de resistir a todas as provas, é em quem, como os gays e lésbicas, deseja tanto sair das margens à quais foi obrigado a viver e passar a fazer parte da vida “normal”. Não se alarmem os que tendem a identificar os gays com os grupos exibicionistas e carnavalescos que fazem suas provocações nas ruas no Dia do Orgulho Gay: eu me atreveria a apostar que, se feita uma pesquisa daqui a vinte anos, os resultados provarão que os matrimônios mais sólidos e conservadores na sociedade espanhola são os dos casais de lésbicas e gays.
 

Vargas Llosa, Mario. OESP.11.07.2004.A-14.