Ódio ao Islã vem das Cruzadas
    Karen Armstrong (The Guardian)

 

 

Em 15 de julho de 1099, os cruzados procedentes da Europa Ocidental conquistaram Jerusalém, caindo sobre seus habitantes judeus e muçulmanos como se fossem os anjos vingadores do apocalipse. Num massacre que faz os atentados de 11 de setembro parecerem insignificantes, cerca de 40 mil pessoas foram trucidadas em dois dias. Uma cidade próspera e florescente se transformara em sepultura nauseabunda. Mas na Europa monges eruditos saudaram este crime contra a humanidade como o maior evento da história mundial desde a crucificação de Cristo.


    As Cruzadas desestabilizaram o Oriente Médio, mas causaram pouca impressão no Mundo Islâmico como um todo. Todavia, no Ocidente elas foram cruciais e construtivas. Esse foi o período em que a cristandade ocidental começava a se recuperar do longo período de barbárie conhecido como Idade Média, e as Cruzadas foram o primeiro ato de cooperação da Nova Europa que com esforço voltava ao cenário internacional. Continuamos falando em “cruzadas” por justiça e paz, chamando de “cruzado” um jornalista que corajosamente descobre alguma verdade salutar – numa mostra de que em nível não analisado o termo ainda é aceitável para a alma ocidental. Um de seus legados mais duradouros é um profundo ódio ao Islã.


    Antes das Cruzadas, os europeus sabiam pouco sobre os muçulmanos, mas, depois da conquista de Jerusalém, estudiosos começaram a cultivar um retrato muito distorcido do Islã, e esta islamofobia, entrelaçada com um anti-semitismo crônico, viria a se tornar uma das idéias européias mais aceitas. Cristãos deviam estar bem cientes de que suas Cruzadas violavam o espírito dos evangelhos:Jesus havia pedido a seus seguidores que amassem seus inimigos, não os exterminassem. Talvez seja este o motivo por que estudiosos cristãos projetaram sua inquietação no próprio povo que eles haviam prejudicado.


    Assim foi que, numa época em que cristãos travavam brutais guerras santas contra muçulmanos no Oriente Médio, o Islã ficou conhecido na Europa como uma crença religiosa intrinsecamente violenta e intolerante, uma religião da espada. Numa época em que os papas tentavam impor o celibato ao clero relutante, biografias do profeta Maomé, escritas por padres e monges ocidentais, descreviam-no, com inveja mal disfarçada, como um pervertido sexual e devasso, que incentivava os muçulmanos a satisfazerem seus mais baixos instintos.


    Numa época em que a Europa feudal estava permeada de hierarquia, o Islã era apresentado como religião anárquica que concedia muito respeito e liberdade a pessoas de níveis inferiores, como escravos e mulheres. Cristãos não conseguiam ver o Islã dissociado de si mesmos: este se havia tornado, por assim dizer, a sombra de si mesmos, o oposto de tudo o que eles imaginavam ser ou esperavam ser.


    Mas a verdade era muito diferente. O Islã, por exemplo, não é religião intolerante ou violenta fantasiada pelo Ocidente. Maomé foi forçado a combater contra a cidade de Meca, que havia jurado exterminar a nova comunidade muçulmana, mas o Alcorão, a inspirada escritura que ele levou aos árabes, condena a guerra de agressão e só permite a guerra de autodefesa. Após cinco anos de guerra, Maomé recorreu a métodos mais pacíficos e finalmente conquistou Meca com uma engenhosa campanha de não-violência. Depois da morte do profeta, os muçulmanos estabeleceram um vasto império que se estendia dos Pirineus (península Ibérica) ao Himalaia, mas essas guerras de conquista eram secularizadas, e só depois receberam interpretação religiosa.


    No império islâmico, os judeus, cristãos e zoroastristas tinham liberdade religiosa. Isto refletia o ensinamento do Alcorão, uma escritura pluralista que confirmava outras tradições. Muçulmanos são orientados por Deus a respeitar o “povo do livro” e lembrados de que têm as mesmas crenças e o mesmo Deus. Maomé não pretendia fundar uma nova religião; estava simplesmente levando a antiga religião dos judeus e dos cristãos aos árabes, que não tinham profeta. Constantemente o Alcorão explica que Maomé não veio suprimir as revelações trazidas por Adão, Abraão, Moisés ou Jesus. Hoje, estudiosos muçulmanos argumentam que, se Maomé tivesse informação sobre os budistas e hindus, os índios americanos e os aborígines australianos, o Alcorão teria também endossado seus sábios e xamãs, pois toda religião corretamente orientada vem de Deus.

 


    Mas as antigas idéias medievais andam tão entranhadas, que pessoas ocidentais acham difícil acreditar nisso. Continuamos vendo o Islã através do filtro de nossas necessidades e confusões. A questão das mulheres é um caso típico. Nenhuma das grandes religiões do mundo tem sido boa para mulheres, mas, a exemplo do cristianismo, o Islã começou com uma mensagem bem positiva, e foi só mais tarde que antigas atitudes patriarcais se apoderaram da religião. O Alcorão concede às mulheres direitos legais de herança e divórcio, que mulheres ocidentais só vieram a ter no século XIX. O alcorão permite que os homens tenham quatro esposas, mas isto não pretendeu satisfazer a lascívia masculina, era uma questão de bem estar social: permitia a viúvas e órfãs encontrar um protetor, sem o qual era impossível para elas sobreviverem nas duras condições da Arábia do século VII.


    Não existia nada no Alcorão sobre a obrigação de todas as mulheres usarem véu, ou sua reclusão em haréns. Isso só entrou para o Islã cerca de três gerações após a morte do profeta, sob influência dos gregos da Bizâncio cristã, que desde muito tempo cobriam e isolavam suas mulheres dessa forma. Cobrir com véu não era prática essencial nem universal: eram geralmente mulheres da alta classe que usavam o véu. Mas isso mudou durante o período colonial.


    Colonialistas como lorde Cromer, o cônsul-geral britânico no Egito de 1883 a 1907, a exemplo dos missionários cristãos que vieram depois deles manifestavam horror ao véu. Enquanto os muçulmanos não abandonassem essa prática bárbara – argumentou Cromer em sua obra monumental, Modern Egypt -, não conseguiriam nunca ingressar no mundo moderno e precisavam do controle do Ocidente. Mas lorde Cromer era membro fundador; em Londres, da Liga Masculina contra o Sufrágio das Mulheres. Mais uma vez, ocidentais estavam vendo o Islã por meio dos próprios preconceitos e confusões, e este cinismo prejudicou a causa do feminismo no mundo muçulmano e atribuiu ao véu nova importância como símbolo de integridade islâmica e cultural.


    Não mais podemos dar-nos ao luxo de ter essa visão desequilibrada do Islã, prejudicial para nós e para os muçulmanos. Devíamos lembrar que, durante o século XII, estudiosos e cientistas muçulmanos da Espanha restauraram para o Ocidente o saber clássico que este havia perdido durante a Idade Média. Devíamos também lembrar que, até 1492, judeus e muçulmanos conviviam em paz e produtivamente na Espanha muçulmana –numa coexistência que era impossível no restante da Europa.


    No início do século XX, quase todos os intelectuais muçulmanos tinham um caso de amor com o Ocidente, admiravam sua sociedade moderna e faziam campanha por democracia e governo constitucional em seus próprios países. Em vez de considerarem o Ocidente um inimigo, reconheciam que este era compatível com as próprias tradições deles. Devíamos perguntar-nos por que perdemos esta boa vontade.


    Armstrong, Karen. O Estado de São Paulo, 23.06.2002, A22

 


    Interpretação do texto

1ª Como a autora descreve a conquista de Jerusalém pelos cruzados? Quais as conseqüências das cruzadas para a Europa? Como os islâmicos foram vistos pelos europeus?


2ª Como a autora analisa o Islã? Como era a relação do islamismo com as outras religiões? Essa situação era a mesma da Europa cristã?


3ª Qual a critica à nossa visão do Islamismo? O que levou as mulheres islâmicas a se cobrirem com véu? Como o véu representa a integridade islâmica no mundo atual? Faça sua crítica.