O Mundo Mudou

Celso Lafer

 

 

As inequívocas manifestações públicas de pesar e solidariedade aos Estados Unidos e de apoio aos brasileiros  que se encontravam nas cidades atingidas pelos recentes atentados terroristas –oferta de sangue e medicamentos; obtenção de informações; plantão de atendimento; medidas de reforço da segurança da Embaixada e dos consulados dos Estados Unidos no Brasil; providências com relação ao espaço aéreo brasileiro, à segurança de aeroportos e outras medidas de preocupação – estão em sintonia e convergência com o que está ocorrendo de forma generalizada no resto do mundo, seja pelas manifestações dos Estados, das sociedades ou das próprias organizações internacionais.

 

As resoluções do Conselho de Segurança e da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre os atentados merecem nossa atenção, já que praticamente autorizam medidas de escopo mais abrangente, uma vez identificados os agentes. É para efeitos da Assembléia Geral da ONU e do Conselho de Segurança, não só quase uma manifestação de inequívoco apoio, como, também, medida que propicia ao governo norte-americano importante liberdade de ação.

 

A Otan, numa resolução inédita, decidiu autorizar uma eventual ação, considerando aquilo que aconteceu nos Estados Unidos como um ataque a qualquer um dos membros que integram a organização.

 

Registrem-se também as manifestações e iniciativas em andamento no âmbito da Organização dos Estados Americanos e do Grupo do Rio. Recordo, ademais, que na hipótese de se confirmar o envolvimento do Taleban e de Osana bin Laden, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou em 19 de fevereiro de 2001, decreto que internacionaliza resolução do Conselho de Segurança quanto a providências a serem tomadas no Brasil visando coibir a ação de qualquer medida ou grupo que tenha alguma relação com aquele grupo.

 

Ao avaliarmos o que significam, do ponto de vista da política internacional, os acontecimentos dos últimos dias, é importante realçar sua gravidade e seu significado.

 

O mundo mudou, gerando uma redefinição do funcionamento do sistema internacional. Deslocou-se o eixo diplomático. Antecipo que os recentes eventos terão um impacto mais incisivo do que a queda do Muro de Berlim, o colapso da União Soviética e o fim da bipolaridade.

 

Com o fim da guerra fria o mundo passou a operar com duas lógicas contraditórias: a da globalização – da organização mundial da produção econômica, da aceitação generalizada de certos valores, como direitos humanos e meio ambiente, e da instantaneidade de acesso à informação – e a da fragmentação das identidades, dos fundamentalismos e secessão de Estados.

 

A primeira metade da década de 90 foi um momento de expectativas positivas decorrentes das possibilidades de convergências: o da Conferência do Rio, de 92, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o da Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, o da assinatura e ratificação da Convenção de Proibição de Armas Químicas e o da Rodada do Uruguai.

 

A partir da segunda metade da década de 90 prevalecem as dificuldades e divergências. É o momento das crises financeiras, dos acontecimentos de Seattle, Washington, Praga e Gênova. Das dificuldades de entrada em vigor de tratados na área do desarmamento e não-proliferação, como o Tratado de Proibição de Testes Nucleares (CTBT). Dos impasses verificados em Durban. É o momento da percepção das assimetrias e dos dilemas da governança, no plano mundial. Nesta matéria o Brasil tem tido uma posição construtiva e crítica. O presidente Fernando Henrique Cardoso tem atuado diretamente nesse processo do encaminhamento dos desafios que se colocam para a ordem mundial. Daí a sua ação no Foro de Governança Progressiva e sua interlocução com o G-7.

 

 

Na década de 90, os Estados Unidos surgiram como a única superpotência capaz de atuar, simultaneamente, no campo estratégico-militar, no campo econômico e no campo dos valores. A ação terrorista que agora atingiu os Estados Unidos é um exemplo de violência real e de violência simbólica. Violência simbólica porque atinge duas engrenagens do poder americano: a econômica, com a derrubada do World Trade Center, e a militar, com o atentado ao Pentágono. Violência real, pois o número de vítimas será superior, seguramente, a Pearl Harbor, que marcou a entrada dos Estados Unidos na 2ª Grande Guerra, onde morreram 2400 pessoas, das quais apenas 68 eram civis.

 

Tudo isso afetou a serenidade, o senso de segurança e a ilusão de invulnerabilidade dos Estados Unidos. Creio, assim, que se recoloca em novos termos o tema da paz e da guerra e o desafio da segurança, nos próprios centros do poder mundial e não apenas fora dele. É isso que está em jogo e que aflorou com essa situação.

 

A guerra, conforme ensina Raymond Aron em seu clássico Penser la Guerre, é um camaleão e assume sempre novas formas, onde o fator tecnológico não determina a História, mas modifica  as condições através das quais os homens atuam.

 

Sabemos que uma das dimensões da Globalização é a tecnologia da informação e dos transportes, o que significa que o mundo opera através da interação de uma multiplicidade de redes, que diluem a diferença entre o interno e o externo. O funcionamento do mundo em redes gera uma multiplicidade de atores governamentais e não-governamentais que, ao operá-las, conduzem, para o bem ou para o mal, a governança ou a falta de governança no mundo.

 

A década de 90 permitiu a prevalência da democracia e a autonomia da sociedade civil. Daí o novo papel das organizações não-governamentais, que atuam no espaço público na defesa de certos valores, como o meio ambiente e os direitos humanos. Existem, no entanto, outros tipos de redes transnacionais, como a da lavagem do dinheiro, a da criminalidade organizada, a do tráfico clandestino dos armamentos, a da produção, distribuição e proliferação de drogas e a do terrorismo. Estas operam clandestinamente. A combinação destes tipos de redes clandestinas, e de outras voltadas para a publicidade, tende a escapar ao controle dos Estados e das organizações internacionais. Isso coloca justamente em questão o tema da racionalidade dos mecanismos tradicionais da economia, da diplomacia e da guerra, e permite multiplicar os riscos difusos da violência.

 

Na lição de Hannah Arendt, a violência não cria o poder. Ela destrói o poder como capacidade de agir conjunto, dado-chave da ação diplomática.São elementos dessa capacidade destrutiva o fato de que, quanto mais desenvolvido é um país, mais vulnerável ele se torna. A eletricidade, os transportes, todos os instrumentos da modernidade são atingíveis, e mor meio deles afeta-se o sistema nervoso de um país. Exemplo disso, é a suspensão dos vôos comerciais sobre o território dos Estados Unidos, fato inédito em 70 anos de aviação comercial. Essa medida impediu que, apenas num dia, 1 milhão e 600 mil pessoas pudessem valer-se dos meios normais da aviação.

 

O segredo sempre foi um instrumento do poder. O poder invisível é aquele que vê e que não é visto. Tradicionalmente, ele está a serviço do Estado, que detém o monopólio da coerção organizada. As redes de terrorismo significam a fragmentação das cadeias do poder. E o medo diante desse tipo de poder invisível aumenta em função da dificuldade na identificação do inimigo, que é, enfim, o problema prático com o qual se defrontam os EUA e a comunidade internacional organizada.

 

Daí decorrem as seguintes observações estratégicas: esse foi o maior ataque terrorista da História. Foi uma operação planejada com elevadíssimo grau de sofisticação e executada com notável rigor operacional.Mas os meios utilizados não foram os de destruição de massa e de alta tecnologia. É difícil mesmo imaginar a gravidade e o alcance que os ataques poderiam ter tido se houvesse a presença, por exemplo, de armas biológicas.

 

 

A observação política é a de que partimos das macropolaridades – seja a hoje superada divisão Leste-Oeste, seja a ainda persistente clivagem Norte-Sul – para micropolaridades, que derivam da fragmentação das cadeias de poder. Isso, evidentemente, representa um desafio também para a democracia e significará a emergência de novos temas da agenda de segurança – terrorismo,  movimentos armado, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro -, o que traz à cena, para um país como o nosso, o tema da porosidade das fronteiras. A prevenção do terrorismo, por outro lado, é uma questão de vigilância, o que traz consigo sempre um desafio para a vida democrática, podendo conduzir, naturalmente, a abusos a  título da necessidade de intensificação dos controles, assim como a manifestações de intolerância.

 

Podemos especular por ora sobre a possibilidade real que os eventos do dia 11 de setembro produzam impactos sobre o Brasil. Por sua inserção no mundo e experiência diplomática, o Brasil tem uma leitura grociana da realidade internacional, ensejada pela gestão dos conflitos por meio do direito e da diplomacia e tem como tema básico de sua política externa o desafio do desenvolvimento. É por esse motivo que a agenda econômica tem até agora estado no centro de minha ação no Ministério das Relações Exteriores.

 

Os eventos dos últimos dias colocam, contudo, a questão da segurança em maior proeminência na agenda internacional. Por sua violência e impacto, no entanto, tenderão a ser inseridos numa lógica hobbesiana das relações internacionais – um retorno ao estado da natureza.

 

É nesse tipo de contexto que poderá dar-se, ao menos em parte, a reação norte-americana. Junto com essa maior magnitude do tema da segurança no plano global, haverá um reforço da idéia que o mundo se divide, politicamente, à maneira de Carl Schmitt, entre amigos e inimigos. Haverá uma expectativa cada vez mais expressiva de apoio e alinhamentos. Haverá, conseqüentemente, uma diminuição do espaço para nuanças.

 

1.      Qual a posição do Conselho de Segurança da ONU e da Otan sobre o ataque as torres gêmeas e ao Pentágono?

 

2.      O autor defende a idéia de que com o fim da guerra fria o mundo passou a operar com duas lógicas contraditórias: a globalização e a fragmentação. Como o autor explica essa contradição?

 

3.      Como o autor analisa a Globalização? Quais os novos atores que se fortaleceram com a globalização?

 

4.      Como Hannah Arendt vê o papel da violência? Por que um país se torna mais vulnerável à medida que é mais desenvolvido? Qual o prejuízo material sofrido com o atentado de 11.9.01?

 

5.  Como o autor analisa os impactos desses atentados?